COLUNA

João Carlos Corrêa
Diretor de Atividades Culturais da Fundação Memorial da América Latina
Especialista em Gestão Cultural (PUC-Rio) e em Jornalismo Cultural e de Entretenimento (Belas Artes-SP); mestrando em Gestão e Políticas Públicas (IDP-SP) e em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (PROLAM-USP).
Quintais caribenhos, memórias brasileiras
Cultura latina, periferia paulistana e um projeto do Memorial para o próximo ano
Há algo curioso acontecendo com a América Latina e com os quintais onde crescemos por aqui, por isso te convido a refletir comigo. Lá fora, nossa música, nossa moda, nossas séries e nossos sotaques estão em alta. Relatórios recentes da indústria fonográfica mostram que a região registrou em 2024 um aumento de 22,5% nas receitas de música gravada, completando quinze anos seguidos de crescimento, com Brasil e México entre os motores deste movimento. Canções em espanhol e em português entram com naturalidade nas playlists do planeta. Por exemplo, Gata Only, parceria de dois artistas chilenos, foi a música mais tocada no TikTok no mundo em 2024, com milhões de vídeos criados na plataforma. Uma parte importante da trilha sonora global hoje nasce deste lado do mapa.

Dentro do Brasil, porém, a palavra “latino-americano” ainda provoca hesitação. Em pesquisas de opinião e estudos acadêmicos, que já tive a oportunidade de comentar aqui, a identificação com a América Latina aparece muitas vezes em segundo plano, em contraste com a realidade de países vizinhos, onde esse pertencimento é assumido com mais naturalidade. Entre diplomatas, gestores públicos e parte das elites culturais, a tendência é reforçar primeiro a condição de “brasileiro”, como se a região fosse apenas cenário de atuação, não uma camada da própria identidade.
Essa contradição fica mais evidente quando pensamos nas memórias que carregamos. A capa do álbum Debí Tirar Más Fotos, de Bad Bunny, é um bom exemplo. A imagem mostra duas cadeiras de plástico brancas sobre um terreno de grama e terra, cercadas por bananeiras, como se fosse o quintal de uma casa simples em qualquer bairro caribenho. Para quem nasceu em Porto Rico ou em outros países da região, essa cena remete de imediato a tardes de família, almoços prolongados e festas improvisadas.

O que chama atenção é como brasileiros de regiões muito diferentes também se reconhecem ali. Muita gente, e eu me incluo nesse grupo, olha para aquela foto e se lembra do quintal da avó, da chácara da família, da casa em que os parentes se reúnem nos fins de semana. O que para um europeu ou norte-americano vai soar com certeza como exotismo tropical é, para nós, a imagem de um domingo comum. Dividimos esse mesmo quintal há gerações e, mesmo assim, seguimos nos tratando como estranhos.
Em outras palavras, partilhamos experiências muito concretas com nossos vizinhos. Compartilhamos o quintal, as cadeiras, o improviso, o calor das festas, o jeito de juntar gente em volta de comida, música e conversa. Mas, quando chega a hora de escolher as palavras que nos definem, uma parcela importante da sociedade prefere se afastar da ideia de América Latina. O resultado é um descompasso entre o que vivemos e a forma como nos apresentamos ao mundo.
Essa distância aparece também na relação com os espaços culturais. Em São Paulo, como em outras metrópoles, a maior parte dos grandes equipamentos está concentrada em áreas centrais. Para crianças e jovens das periferias, esses lugares seguem distantes no mapa e no modo de funcionar. A cultura ganha palco nos bailes, nas batalhas de rima, nas festas de rua, nos vídeos que circulam pelo celular, muito mais do que em museus e bibliotecas que, para muitos, parecem pertencer a outra cidade (ou país). A América Latina chega massivamente a essa juventude pela música no fone e pelas imagens que viralizam nas redes, mas ainda chega pouco pelas instituições públicas que deveriam estar a serviço dela.
O Memorial da América Latina nasceu justamente para afirmar a presença do continente em São Paulo. Como diretor de Atividades Culturais da Fundação, herdeiro de um legado de Darcy Ribeiro, tenho claro que não basta abrir as portas e esperar que o público venha até nós. Se quisermos que as juventudes se sintam parte da América Latina, essa conversa não pode depender apenas da visita eventual a um grande equipamento no centro da cidade. Ela precisa entrar cedo na rotina, nos contos, nos filmes, nas rodas de história que acontecem perto de casa.
É nesse contexto que estamos estruturando o projeto Cenas Latinas nas Fábricas de Cultura, em parceria com as Fábricas de Cultura do Estado de São Paulo e com os consulados latino-americanos e caribenhos sediados na cidade. A ideia é simples de entender e ampla nas possibilidades. Contos infantis, livros, filmes e peças curtas produzidos em países da região serão compartilhados com monitores, educadores e artistas das Fábricas, localizadas nas periferias. A partir desse material, serão organizadas sessões de contação de histórias, atividades de teatro, exibições de cinema e outras ações com crianças e jovens atendidos por esses equipamentos. Agradeço muito ao meu parceiro cultural, Renato Barreiros, Superintendente de Promoção e Articulação das Fábricas de Cultura, por nos abrir as portas a essa oportunidade e trabalhar conosco na curadoria dessa proposta.
As histórias virão de países como México, Colômbia, Chile, Peru, Cuba, República Dominicana e tantos outros que mantêm representação consular em São Paulo. Em cada unidade das Fábricas, essas narrativas serão trabalhadas à maneira própria de cada território. Haverá crianças brasileiras ouvindo contos tradicionais de outros países latino-americanos ao lado de crianças migrantes que reconhecerão ali as histórias de suas famílias. Haverá canções, personagens e paisagens familiares para uns e novas para outros, todas tratadas como partes de um mesmo universo cultural.
Ao final de um primeiro ciclo, a proposta é realizar uma grande feira no Memorial da América Latina, reunindo o que tenha sido criado nos bairros. As Fábricas trarão apresentações, leituras públicas, vídeos, experiências cênicas e musicais construídas nas periferias. Os consulados participarão com autores, ilustradores, cineastas, educadores e representantes oficiais. As famílias que vivem longe do centro terão um motivo concreto para cruzar a cidade e se encontrar em um espaço que, desde a origem, foi pensado para acolher a diversidade do continente.
A intenção é que o Cenas Latinas nas Fábricas de Cultura não seja apenas um projeto pontual, mas sim um caminho para que essa aproximação se torne política pública continuada, atravessando as gestões vindouras. Enquanto tivermos a responsabilidade de conduzir a Diretoria de Atividades Culturais, o esforço será o de deixar essa articulação entre Memorial, Fábricas e consulados suficientemente estruturada para seguir adiante, independentemente de mudanças de governo. Trata-se de ligar, de forma estável, o quintal caribenho da capa do disco, o quintal brasileiro das nossas memórias e os espaços institucionais que o Estado oferece à população.
No fim das contas, a discussão vai além do sucesso comercial da nossa música. A pergunta que importa é outra: que experiências estamos construindo para que as novas gerações se sintam, com naturalidade, parte da América Latina? Se a indústria já nos enxerga como potência e se a estética latina ocupa o imaginário global, falta conectar essa energia ao trabalho cotidiano de formação cultural, especialmente nos territórios que historicamente ficaram à margem das políticas culturais.
Projetos como o Cenas Latinas nas Fábricas de Cultura não esgotam esse desafio, mas indicam uma direção concreta. Em vez de tratar a América Latina como tema abstrato, levamos suas histórias para o chão da periferia, para o tempo da infância, para a rotina das Fábricas de Cultura. O mundo já dança a nossa música. O passo seguinte é garantir que, aqui dentro, as crianças e os jovens que crescem em São Paulo se reconheçam nessa mesma música e nessas mesmas histórias, sem medo, sem constrangimento e sem precisar pedir autorização a ninguém para dizer que também são latino-americanos.

