COLUNA

Por Pedro Machado Mastrobuono
Presidente da Fundação Memorial da América Latina
Pós-doutor em Antropologia Social; agraciado pelo Senado Federal com a Comenda Câmara Cascudo por sua trajetória na defesa do patrimônio cultural brasileiro
O farol de Darcy Ribeiro em um país dividido
Fui convidado pela Casa Darcy Ribeiro como uma das dez personalidades a escrever sobre Darcy, e esse convite me honra de uma forma difícil de medir. Quando recebi a notícia, a minha primeira lembrança não foi acadêmica nem institucional. Foi íntima. Lembrei-me do menino que fui, em Lima, no Peru, observando Darcy Ribeiro frequentar a minha casa, conversando com meu pai, Marco Antônio França Mastrobuono, e irradiando uma energia que parecia expandir as paredes ao redor.
Meu pai tinha sido ministro muito jovem, com apenas vinte e oito anos, no governo João Goulart. Até a entrada de Ciro Gomes na política, que assumiu responsabilidades ministeriais aos vinte e sete anos e meio, ele era o brasileiro mais jovem a ter exercido funções dessa natureza. Naquele tempo, Darcy Ribeiro também exerceu funções ministeriais no mesmo governo. Com o passar dos anos, circunstâncias políticas levaram minha família a deixar o país, e fomos morar no Peru, onde passei toda a infância. Darcy também viveu parte de sua vida fora do Brasil e, nesse período, frequentou a nossa casa em Lima. Eu era menino, mas nunca esqueci o magnetismo com que ele falava sobre a identidade latino-americana, como se fosse possível tocar com as mãos a utopia de um continente que se reconhecesse irmão de si mesmo. Lembro-me de que ele repetia, com aquela voz cheia de convicção, que os povos latino-americanos constituíam “a nossa grande contribuição à história da humanidade”, porque eram povos novos, em formação, sínteses vivas da diversidade.
Jamais poderia imaginar que muitos anos depois eu me tornaria advogado especializado em direitos autorais, museólogo, antropólogo, pós-doutor em Antropologia Social, autor de livros e artigos sobre cultura e patrimônio, e que viesse a presidir justamente um instituto concebido por ele, o Memorial da América Latina. A vida, às vezes, parece ter um senso de continuidade que só compreendemos retrospectivamente. Eu cresci ouvindo Darcy falar sobre pertencimento. Hoje, presido uma instituição cuja missão central é iluminar esse pertencimento. E, diante disso, sinto que a frase de Clifford Geertz ecoa ainda mais forte: “A diversidade humana não é um fardo, é o ambiente onde a cultura floresce”. Darcy compreendia isso de forma profunda e visceral.
Darcy tinha um entendimento sofisticado de que a cultura é o arcabouço invisível que sustenta a vida coletiva. Para ele, a identidade nacional e a identidade latino-americana não eram abstrações retóricas. Eram projetos concretos, materiais, educacionais. Criou a Universidade de Brasília, imaginando-a como um laboratório intelectual para o país que ainda não existia, mas precisava existir. Concebeu o CIEP, Centro Integrado de Educação Pública, símbolo de uma revolução silenciosa em que educação, cultura e proteção social caminhavam juntas. Darcy dizia que “a crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”, e por isso imaginou políticas capazes de romper com o destino previsto para milhões de crianças brasileiras.
Essa visão influenciou políticas posteriores, como o projeto dos CEUs em São Paulo, na gestão de Marta Suplicy, e ecoou longe das fronteiras brasileiras. Medellín, considerada uma das cidades mais violentas do mundo, transformou-se ao abraçar uma estratégia muito parecida: bibliotecas-parque, centros culturais, equipamentos educativos descentralizados, aprendizagem como eixo de pacificação. A antropologia sempre reconheceu o poder dessas estruturas de convivência. Não por acaso, Lévi-Strauss afirmava que “quanto mais singular um povo, mais ele fala à humanidade inteira”. Darcy compreendia essa singularidade latino-americana como uma força civilizatória.
O Memorial da América Latina, que Darcy imaginou como um altar laico das identidades que formam o continente, é expressão dessa filosofia. Ele jamais quis um monumento estático, mas sim uma usina de encontros, debates, pertencimentos e futuros. Transformou o Memorial em cátedra da UNESCO porque via na América Latina não apenas uma soma de países, mas uma constelação de histórias capazes de produzir um destino comum. Darcy era um artífice da esperança. O Brasil fazia sentido para ele apenas quando dialogava com o continente ao qual pertence. A própria obra de Néstor García Canclini, ao falar das culturas híbridas que compõem a América Latina, parece comentar diretamente o projeto de Darcy: a hibridez não é uma fragilidade, mas uma potência.
Hoje, quando observo o mundo e o Brasil, sinto uma falta profunda desse olhar. Vivemos uma era em que a polarização se converteu em doença autoimune. Uma parte significativa do país rejeita a outra, como se estivéssemos condenados a uma guerra civil simbólica. As últimas eleições revelaram um país dividido de maneira quase espelhada, e o ódio disseminado como linguagem política tem produzido um esgarçamento do tecido social que ameaça a própria noção de convivência democrática. Esse ambiente tóxico compromete o desenvolvimento econômico, a estabilidade institucional e a saúde cívica de um povo que, até pouco tempo atrás, era reconhecido mundialmente como tolerante, cordial, afetuoso, caloroso e profundamente aberto à diversidade. Darcy certamente diria que estamos desperdiçando aquilo que temos de mais valioso. E estaria certo quando afirmava que “só há duas opções nesta vida: se resignar ou se indignar; eu não vou me resignar nunca”. Sua indignação era pedagógica.
O Brasil é um país singular. Nenhum outro lugar do mundo possui uma identidade tão amplamente miscigenada a ponto de permitir que qualquer rosto possa ser um rosto brasileiro. Esse patrimônio antropológico extraordinário, essa multiplicidade étnica, linguística, religiosa e cultural, faz-nos um povo de sínteses raras. Somos filhos de todas as travessias e herdeiros de todas as dores. A força da nossa formação nunca esteve na homogeneidade, e sim na complementaridade. Somos, como Darcy escreveu, povos novos, sociedades em elaboração, culturas em movimento. Roberto DaMatta, ao analisar a sociedade brasileira, sintetizou algo essencial: o Brasil vive da arte de misturar. É justamente essa arte que parece estar se perdendo em meio a disputas irracionais.
Por isso é tão doloroso assistir ao crescimento da intolerância num país cuja riqueza sempre foi a capacidade de acolher. Darcy Ribeiro faz falta porque oferecia uma pedagogia da conciliação, não no sentido frágil de acomodar conflitos, mas no sentido forte de educar para a convivência. Sua obra é uma convocação para que o Brasil se reconheça como país plural, mestiço, continental. Darcy acreditava que não há futuro para nações que não respeitam as diferenças dentro de si. A antropologia lhe ensinou que povos sobrevivem quando aprendem uns com os outros. E ele traduziu esse ensinamento em políticas públicas, universidades, instituições culturais, livros, discursos, projetos e sonhos.
Como brasileiro, sinto uma angústia profunda ao ver que a identidade que sempre nos distinguiu está sendo corroída por disputas irracionais. Sinto que perdemos a disposição para ouvir. Sinto que o ódio está substituindo a imaginação. Sinto, sobretudo, que uma grande maioria silenciosa está cansada de ser arrastada para trincheiras ideológicas que só enfraquecem o país. Darcy Ribeiro sempre acreditou que a educação era o centro ativo do futuro. Retomar seu pensamento não é um gesto nostálgico, mas um imperativo ético. Ele mesmo dizia que “o que mais quero é que o Brasil descubra a si mesmo”. Essa frase, hoje, ressoa como advertência e esperança.
Fui menino quando o vi pela primeira vez, e não compreendia sua densidade intelectual. Hoje, adulto, acadêmico, gestor público e presidente do Memorial da América Latina, reconheço que Darcy Ribeiro não foi apenas um nome importante para o Brasil. Ele foi um farol. Escrever sobre Darcy é escrever sobre um Brasil que ainda é possível. Um Brasil que não teme a diversidade, que não demoniza a diferença, que sabe que a cultura é a argamassa da democracia e que entende que um país só se constrói quando respeita a pluralidade de seus próprios filhos.
O Brasil está necessitado, mais uma vez, da coragem civilizatória de Darcy Ribeiro. E cabe a nós, herdeiros de sua obra, garantir que essa coragem permaneça viva.

