
Colômbia é mais do que imaginam e seu futuro passa pela memória
Em visita ao Memorial da América Latina, o cônsul-geral da Colômbia em São Paulo mostrou um país múltiplo e profundo, onde música, cultura campesina e a resistência de Benkos Biohó reescrevem a história para além dos estereótipos
Por Isabella Vilela
Quando o mundo olha para a Colômbia, muitas vezes ainda enxerga um retrato distorcido, marcado pela sombra do narcotráfico e da violência, uma ferida que deixou cicatrizes, mas que não pode ser o único foco das narrativas sobre o país. Outras vezes, chegam ao olhar internacional algumas referências de exportação, como Shakira ou Maluma, na área artística, e o café, na parte da gastronomia. Mas a Colômbia real existe em outras frequências. É um país que dança vallenato e salsa com a mesma naturalidade com que compartilha um café nas praças de povoados andinos. É um território onde a biodiversidade se encontra com a do Brasil, onde desertos convivem com selvas amazônicas e onde tradições indígenas, afrodescendentes e campesinas moldam um mosaico cultural pouco visível fora de suas fronteiras.
Essa Colômbia, que se reinventa pela memória e pela cultura, foi apresentada em detalhes por Carlos García Bonilla, cônsul-geral da Colômbia em São Paulo, durante entrevista exclusiva concedida à Revista Memorial Cultural em sua visita ao Memorial da América Latina. Diplomata de carreira, com passagens por diversos países em crise, ele trouxe à capital paulista uma narrativa diferente: a de uma Colômbia que não nega suas feridas históricas, mas encontra nas artes, no esporte e nas comunidades tradicionais um caminho para ressignificar sua imagem no mundo.

Vista de Bogotá, cidade que simboliza a pluralidade colombiana
“Temos pelo menos cinco Colômbias distintas”, garante. O diplomata se refere às regiões do Pacífico, do Caribe, dos Andes, da Amazônia e dos rios orientais, cada uma com sotaques, ritmos e paisagens próprias. Essa diversidade, contudo, é sustentada por uma mesma espinha dorsal: a vida campesina. Cerca de 60% do território colombiano é rural, formado por pequenos povoados separados por cordilheiras, mas unidos por laços comunitários. “O mais autêntico do país está na gentileza das pessoas e no espírito coletivo que resiste nas zonas rurais”, destaca.
A geografia, de fato, ajuda a explicar a pluralidade cultural. No extremo norte, em La Guajira, desertos se encontram com o mar e os indígenas Wayuu preservam língua e costumes milenares. Ali, em noites de lua cheia, é possível ler um livro apenas com a claridade natural, enquanto o céu revela a Via Láctea em toda a sua intensidade.
Já no Pacífico, onde está a maior biodiversidade do mundo, comunidades afrocolombianas celebram o Festival Petronio com músicas de origem africana, como arrullos e currulaos. Em Cali, a salsa transforma a cidade na “capital mundial da dança”. E na zona cafeeira, pequenas propriedades familiares ainda cuidam da seleção artesanal dos grãos que projetaram o café colombiano internacionalmente. Curiosamente, muito do melhor café produzido segue sendo exportado, enquanto o país importa do Brasil uma segunda linha de qualidade para atender à demanda interna.
Essa riqueza cultural se estende também à gastronomia, onde a arepa é disputada com a Venezuela como símbolo nacional. Para o cônsul, a diferença está no foco. “Na Colômbia, a estrela é a própria arepa, com mais de 20 variedades regionais.” Da bandeja paisa das montanhas andinas às iguanas preparadas com coco na Guajira, da sopa ajiaco às formigas culonas de Santander, a culinária sintetiza a diversidade geográfica e cultural do país.
Na literatura, o legado de Gabriel García Márquez se soma a vozes como Marbel Moreno, Gonzalo Arango e Andrés Caicedo. No cinema, nomes como Ciro Guerra projetam narrativas que percorrem territórios e mitologias, como em Los Viajes del Viento, que evoca a lenda de Francisco el Hombre, trovador popular que teria vencido o diabo ao acordeão. Na música, a cumbia, nascida na Colômbia, espalhou-se por todo o continente graças à modernização de Lucho Bermúdez e hoje é ouvida de norte a sul da América Latina.

San Basilio de Palenque é reconhecido como Património Cultural e Imaterial da Humanidade pela UNESCO e foi o primeiro quilombo das Américas
Mas talvez nenhum episódio seja tão emblemático para compreender a Colômbia além dos clichês quanto a história de Benkos Biohó. De acordo com o cônsul, a história da figura começa no arquipélago dos Bijagós, atual Guiné-Bissau, onde ele foi escravizado e levado a Cartagena no fim do século 16. Em 1599, liderou uma rebelião que deu origem ao primeiro quilombo das Américas, nos Montes de María. Organizados em comunidade, com língua e cultura próprias, os fugitivos resistiram por décadas até que, em 1691, a Coroa Espanhola reconheceu oficialmente o Palenque de San Basilio. Mesmo após a captura e execução de Biohó em 1621, seu legado permanece vivo: em 2005, San Basilio foi reconhecido pela Unesco como Patrimônio Imaterial da Humanidade.
“O movimento de Benkos foi anterior às independências dos Estados Unidos e do Haiti, mas raramente se fala dele. Talvez porque eram organizações negras, e a história negra sempre foi marginalizada”, observa Carlos. “A recuperação dessas memórias é parte da luta atual para resgatar histórias silenciadas e projetar um futuro mais justo”.
Essa Colômbia múltipla também se expressa em celebrações identitárias. Se o 20 de julho é a data oficial da independência, o verdadeiro símbolo popular é o Día de las Velitas, em 7 de dezembro, quando famílias e comunidades inteiras iluminam ruas com velas e partilham refeições. Um gesto simples, mas que reafirma o espírito coletivo de um país que, apesar de 60 anos de guerra interna, escolhe dançar, cantar e transformar a dor em alegria.
“É pela cultura e pelo esporte que podemos mudar o estigma que ainda recai sobre a Colômbia”, concluiu o diplomata. Do futebol de James Rodríguez à voz de Shakira, passando pelas praças anônimas onde campesinos compartilham um “tinto” quente, a Colômbia segue redesenhando sua imagem diante do mundo.

Vista de Leticia, cidade da Amazônia colombiana

Original da Colômbia, arepa é um dos alimentos mais típicos do país

A belíssima La Guajira, onde o deserto costeiro se encontra com o mar