COLUNA

Por Pedro Machado Mastrobuono
Presidente da Fundação Memorial da América Latina
Pós-doutor em Antropologia Social; Doutor em proteção ao Patrimônio Cultural; Advogado especializado em direitos autorais; e Ex-presidente do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM)
Capoeira, diáspora afro-atlântica e horizonte olímpico: uma proposta antropológica
Resumo: Este artigo examina a capoeira como expressão afro-diaspórica de alcance global, articulando sua condição de patrimônio cultural imaterial, sua crescente profissionalização no Brasil e os desafios para sua consolidação como modalidade esportiva internacional. Defende-se a possibilidade de inserção da capoeira na agenda olímpica, tomando como eixos a cooperação Brasil–Angola–Mercosul e a articulação entre cultura, corpo e política pública.
A capoeira, inscrita pela UNESCO em 2014 na Lista Representativa do Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, constitui uma síntese singular de luta, dança, música e ritual, forjada por africanos e seus descendentes no Brasil urbano do século 18 e 19. Estima-se que hoje reúna cerca de 8 milhões de praticantes no mundo, sendo aproximadamente 6 milhões no Brasil, com presença em mais de 150 países (Melo 2023). Trata-se, portanto, de um dos mais potentes fenômenos culturais afrodiaspóricos em circulação global.
Venho insistindo, tanto em artigos publicados em grandes veículos de mídia, como Os Ventos Sopram em Dialeto, publicado em 12 de abril de 2025 na Folha de S. Paulo, quanto em obras de caráter ensaístico-literário, como O Ofício do Vento – Sonetos sobre Cultura e Poder (Mastrobuono 2025, Editora Pinard), que a capoeira deve ser reconhecida não apenas como patrimônio, mas também como modalidade esportiva a ser incluída no programa olímpico, à semelhança de práticas culturais transformadas em esporte como o skate, o breaking e o surfe. Não se trata apenas de esporte: trata-se de afirmar a herança africana na modernidade global, transformando memória de resistência em linguagem universal de inclusão.
Pesquisas etnográficas (Desch-Obi 2008; Assunção 2005) têm demonstrado as continuidades entre a capoeira e o engolo, jogo angolano caracterizado por inversões, chutes e esquivas acrobáticas. A presença de arcos musicais africanos, como o hungu/mbulumbumba, estreitamente aparentados ao berimbau brasileiro (Stone 2010), reforça a ponte Angola–Bahia na formação musical e rítmica da capoeira. Essa herança foi reapropriada discursivamente por mestres como Vicente Ferreira Pastinha, que resgatou a designação “capoeira angola” e estabeleceu uma narrativa identitária de filiação africana. No plano antropológico, a roda de capoeira constitui uma cosmologia performática: círculo como microcosmo social, inversões corporais como metáforas de travessia ontológica, cantos como pedagogia e memória coletiva. Essa dimensão conecta-se àquilo que denominei, em outra ocasião, de “ventos que sopram em dialeto” (Mastrobuono 2025a), indicando a ressonância transnacional de uma linguagem cultural que transcende fronteiras.
Cabe recordar, no entanto, que a capoeira, antes de se tornar símbolo nacional e patrimônio da humanidade, foi criminalizada pela legislação republicana. O Código Penal de 1890, em seu artigo 402, estabelecia que “fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem” constituía crime punido com prisão. Os artigos 403 e 404 previam penas agravadas, inclusive para estrangeiros, que poderiam ser deportados em caso de reincidência. Esta história de repressão é eloquente: o que foi perseguido como subversivo hoje se reconhece como expressão legítima da identidade brasileira. Na perspectiva antropológica, a passagem da criminalização ao reconhecimento patrimonial revela um processo de ressignificação cultural, no qual práticas corporais marginalizadas tornam-se parte central do repertório simbólico da nação.
Outro aspecto decisivo é a força da capoeira como difusora da língua portuguesa brasileira no mundo. Para jogar capoeira é necessário aprender cantigas tradicionais de roda, muitas delas transmitidas oralmente em português, além do vocabulário ritual da prática (ginga, ladainha, corrido, au, negativa, mandinga). Além disso, o berimbau, instrumento central da roda, exige domínio não apenas musical, mas também linguístico, já que organiza os toques e os comandos da roda em português. Nesse sentido, a capoeira é uma das mais eficazes ferramentas de soft power cultural brasileiro, pois milhares de praticantes no exterior aprendem fragmentos da língua, da música e da cosmologia afro-brasileira através da prática corporal. Trata-se de um exemplo claro de como uma tradição da diáspora africana se transformou em dispositivo de diplomacia cultural global.
O Projeto de Lei 3.640/2020, aprovado em caráter conclusivo na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (abril de 2025) e atualmente em tramitação no Senado, estabelece o reconhecimento legal da profissão de Mestre de Capoeira no Brasil, definindo competências específicas e vinculando a atividade à Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Já existem códigos correlatos, como o 3771-20 (atleta de luta), que permitem a formalização parcial. Com a sanção da lei, abrir-se-á a possibilidade de contratos formais, direitos previdenciários e carteiras profissionais que, além de regularizar a prática no Brasil, podem servir de documentos hábeis de portabilidade em acordos internacionais. No âmbito regional, o Acordo de Residência do Mercosul (2002) já garante a nacionais dos Estados Parte/Associados o direito de trabalhar e residir em países do bloco. Um passo adicional seria a celebração de Acordos de Reconhecimento Mútuo (MRAs) entre federações nacionais de capoeira, estabelecendo níveis, carga horária, currículos e carteiras interoperáveis, de modo a facilitar a mobilidade laboral de mestres e instrutores na região.
Para que a capoeira seja reconhecida como modalidade esportiva pelo Comitê Olímpico Internacional (COI), é necessário cumprir requisitos formais: existência de uma Federação Internacional (IF) com governança sólida, transparência e representatividade global; adoção do Código Mundial Antidopagem (WADA); circuito competitivo internacional, com ranking, categorias e árbitros certificados; e programas de inclusão de gênero e juventude, alinhados às diretrizes olímpicas (IOC 2021). Atualmente, existem entidades internacionais (World Capoeira Federation; International Capoeira Federation) que buscam esse reconhecimento, mas ainda sem status oficial perante o COI. Um roadmap realista inclui padronização técnica (livro de regras, arbitragem, categorias); adesão a jogos multiesportivos regionais e aos Jogos Mundiais; criação de observatórios estatísticos para mensuração de praticantes e clubes; e apresentação de candidatura a uma futura edição olímpica, preferencialmente em contextos com apelo cultural afrodiaspórico.
Enquanto pós-doutor em Antropologia Social e Presidente do Memorial da América Latina, instituição que dialoga com 22 corpos consulares da região, defendo que a consolidação internacional da capoeira deve passar por um gesto diplomático de alto alcance simbólico: a articulação de um Seminário Internacional Brasil–Angola–Mercosul sobre Capoeira e Patrimônio Afro-Atlântico, envolvendo o governo de Angola, mestres, federações e organismos multilaterais. Tal seminário poderia produzir uma Declaração Conjunta Brasil–Angola, a ser encaminhada ao COI, à UNESCO e a organismos regionais, propondo a formação de uma Confederação Internacional de Capoeira com base afro-atlântica. Esse passo estratégico reforçaria a legitimidade da capoeira como expressão afrodiaspórica e abriria caminho para sua futura inclusão na agenda olímpica.
A capoeira é, ao mesmo tempo, patrimônio imaterial, linguagem afrodiaspórica, vetor da língua portuguesa e prática esportiva de alcance mundial. Sua consolidação como profissão regulamentada no Brasil e sua projeção como modalidade olímpica dependem de articulação entre pesquisa antropológica, políticas culturais e diplomacia internacional. Ao propor a aproximação entre Brasil, Angola e Mercosul, reafirmo que a capoeira é não apenas um jogo ou uma luta, mas uma epistemologia corporal da diáspora, cuja inscrição no movimento olímpico representaria um ato de justiça histórica e de reconhecimento global.

Litografia Jogar Capoëra (1835), de Johann Moritz Rugendas
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Referências
- Assunção, M. R. (2005). Capoeira: The History of an Afro-Brazilian Martial Art. Routledge.
- Brasil. (1890). Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil (Decreto nº 847, arts. 402–404).
- Desch-Obi, T. J. (2008). Fighting for Honor: The History of African Martial Art Traditions in the Atlantic World. University of South Carolina Press.
- IOC (2021). Olympic Charter. Lausanne: International Olympic Committee.
- Mastrobuono, P. M. (2025a). “Os Ventos Sopram em Dialeto”. Folha de São Paulo, 12 de abril de 2025.
- Mastrobuono, P. M. (2025b). O Ofício do Vento – Sonetos sobre Cultura e Poder. São Paulo: Pinard.
- Melo, R. (2023). “Capoeira Global: Numbers and Diaspora”. MDPI Review of Physical Education and Sport.
- Stone, R. (2010). Arching Over the Atlantic: The Hungu, the Mbulumbumba, and the Berimbau. Ethnomusicology Journal.
- UNESCO (2014). “Capoeira circle”. Representative List of the Intangible Cultural Heritage of Humanity. Paris: UNESCO.
- WADA (2021). World Anti-Doping Code. Montreal: World Anti-Doping Agency.
- Brasil. Projeto de Lei n. 3.640/2020. Câmara dos Deputados / Senado Federal.
- Mercosul (2002). Acordo de Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul.