LATINIDADES

A Bolívia que rompe fronteiras e celebra sua identidade
Por Isabella Vilela
Cores, danças, sabores e rituais marcam a identidade da Bolívia, um país cuja diversidade cultural vai muito além das imagens cristalizadas pelo imaginário coletivo. Entre estereótipos e preconceitos, ainda há quem olhe torto para a Bolívia, ignorando sua história, sua beleza e a riqueza que esse país carrega. Conhecida mundialmente por tradições indígenas e por seu patrimônio ancestral, a nação andina guarda também talentos contemporâneos nas artes, na música e na gastronomia, além de belezas naturais que atraem turistas de todo o mundo.
Essa pluralidade se reflete com intensidade em São Paulo, que abriga a maior comunidade boliviana fora do país. É nessa cidade multicultural que a Bolívia se reinventa e reafirma sua identidade, mantendo vivas tradições que atravessam gerações.

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Quem defende esse olhar ampliado é a cônsul-geral da Bolívia em São Paulo, Vânia Claros. À frente do consulado há XX anos, ela reforça a importância de romper com clichês e de dar visibilidade a uma cultura em constante transformação. “A Bolívia é caracterizada por ser muito diversa cultural e etnicamente, e também por ter muito talento. Não temos nada contra o típico e o autóctone, que são lindos e representam nossa cultura, mas queremos que também vejam os outros talentos que temos”, afirma.
Entre esses talentos, Vânia cita nomes consagrados como o pintor Mamani Mamani, artista conhecido pelas cores fortes, que realizou diversas exposições no exterior e recebeu seu primeiro prêmio em 1991, representando as imagens e os sentimentos da cultura indígena boliviana com um tom emocional em consonância com a vida andina. A cônsul também destaca as artes visuais contemporâneas e iniciativas musicais, como a Orquestra Sinfônica da Bolívia, que concede bolsas a jovens músicos. “Eles acabam tendo oportunidades no exterior, onde são mais valorizados. Muitos não voltam, mas levam consigo nossa identidade”, explica.
Se há uma expressão capaz de condensar a essência boliviana, é o Carnaval de Oruro, declarado Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela UNESCO. A celebração dura vários dias e combina fé, tradição e espetáculo. Mistura da religião católica, herdada da colonização espanhola, com as tradições ancestrais dos povos andinos, a festa expressa um sincretismo singular com a devoção à Pachamama que se funde com o culto à Virgem e revela uma religiosidade complexa e profundamente enraizada na vida popular.
Nas entradas folclóricas, antes das danças, há sempre uma procissão em homenagem às padroeiras. Cada cidade boliviana tem a sua: Copacabana, Cotoca, Urcupiña. As fraternidades desfilam em oferenda, fé e devoção, dançando para agradecer ou pedir bênçãos. Os grupos percorrem quilômetros até chegar à igreja de Socavón, em Oruro, onde há um gesto profundamente simbólico ao lado da capela, onde encontra-se a entrada de uma mina. Na cultura dos trabalhadores mineiros, antes de iniciar as expedições, é comum realizar uma oferenda ao deus da mina — representado pelo diabo — pedindo proteção. É um ritual impressionante, em que o sagrado e o profano se tocam. “Dentro da igreja, você tem acesso direto à mina. É muito simbólico”, descreve Vânia.
A diversidade das danças dá ainda mais força ao espetáculo, com caporales, morenadas, diabladas e saya afro. Cada ritmo carrega uma narrativa histórica e social, representada nos trajes típicos, bordados riquíssimos e coreografias vigorosas. “O Carnaval começa na sexta-feira à noite, com o concurso de bandas. Todos tocam juntos e passam a madrugada festejando. No sábado, começam as entradas dos grupos, que duram o dia inteiro. E assim segue até o domingo”.
Essa capacidade de preservar tradições e ao mesmo tempo reinventá-las é uma marca da cultura boliviana. Em São Paulo, as ruas de Oruro se perpetuam com os filhos de bolivianos que também participam das fraternidades e assumem esse legado cultural, provando que, mesmo longe, a identidade segue viva.

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A mesma diversidade se manifesta à mesa. Entre os pratos tradicionais estão o charquecan — carne de lhama seca ao sol, servida com milho e batatas — e o rostro asado, que nada mais é do que a cabeça de boi assada. Ingredientes como o mote, milho branco de grãos grandes, revelam a riqueza agrícola e a variedade de cultivos que sustentam a culinária local. Entre as bebidas, o destaque fica com singani, destilado artesanal de uva, considerado o primeiro da América do Sul. “Algumas pessoas até acharam que era água e já saíram dançando depois de beber. Mas a ideia não é tomar puro. Normalmente se mistura com refrigerante ou suco de limão”, comenta Claros.
Uma curiosidade é que a produção vitivinícola de Tarija, no sul do país, vem ganhando projeção internacional, com vinhos premiados e experiências de enoturismo que atraem cada vez mais visitantes. “Infelizmente, ainda não chegaram ao mercado brasileiro, mas é uma das riquezas que queremos divulgar”, acrescenta.
Quando o assunto é turismo, o Salar de Uyuni surge quase inevitavelmente como cartão-postal. O maior deserto de sal do mundo abriga hotéis inteiros construídos com blocos do mineral, além de paisagens que se transformam em espelhos infinitos durante a época de chuvas. Mas a Bolívia é muito mais do que isso. A Laguna Rosa, habitada por flamingos, e a Chiquitania, região tropical marcada por igrejas históricas e comunidades tradicionais, revelam outras faces do país. “Cada região guarda uma diversidade própria de natureza e cultura”, reforça a diplomata.
No Brasil, essa riqueza cultural encontrou terreno fértil. São Paulo concentra cerca de 80% a 90% da comunidade boliviana que vive no país, formando o maior núcleo migrante fora da Bolívia. Os números oficiais da Polícia Federal registram aproximadamente 182 mil cidadãos, mas as estimativas chegam a meio milhão de pessoas. A comunidade é muito grande e segue em constante movimento.
Apesar dos desafios sociais enfrentados por parte dessa população, a diplomata destaca a força do vínculo com a pátria. Para ela, ser boliviano é carregar no cotidiano memórias profundas, transmitidas pela cultura e pela sensibilidade. “Gostaria que os brasileiros percebessem o amor que o boliviano tem pela pátria. Mesmo longe, a Bolívia está presente em nossa comida, em nossas festas, na forma como educamos os filhos. Eu sempre digo: o cheiro da terra depois da chuva na Bolívia é único. Esse aroma traz à memória um vínculo profundo com nossa terra. É algo que carregamos sempre.”

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