ENTREVISTA

Goiás muito além do rótulo
O estado do centro-oeste articula ações culturais com o Memorial da América Latina que propõem um encontro entre territórios, imaginários e práticas artísticas diversas
Não podemos e nem devemos reduzir estados inteiros do Brasil a imagens prontas, como se fossem únicas e imutáveis. Mesmo assim, fazemos isso rotineiramente, alicerçando ideias que não remetem à realidade e negando uma das maiores forças do nosso país: a pluralidade. Tome Goiás como exemplo. Quando alguém de fora pensa no estado, especialmente quem é da região sudeste, o que vem à cabeça? Sertanejo universitário, Chapada dos Veadeiros, pequi? Essas referências existem e têm valor, claro. Mas Goiás vai muito além. É um estado com uma produção cultural intensa e variada, das artes visuais à música, da literatura ao pensamento acadêmico, não cabendo em rótulos.
Justamente por isso, chega com muita expectativa e bons olhos a carta de intenções entre o Estado de Goiás e o Memorial da América Latina para construir uma ponte entre o Centro-Oeste e o Sudeste, apresentando em São Paulo uma programação que revele um Goiás multifacetado, pulsante e contemporâneo. Ainda em fase de planejamento, essa aproximação prevê a realização de editais e ações culturais que tragam ao público paulista um recorte mais abrangente da produção goiana, indo além dos estereótipos, sem negar suas raízes, mas jogando luz sobre suas outras potências.
Na opinião da Secretária de Cultura do Estado de Goiás, Yara Nunes, equilibrar essas diferentes expressões em possíveis ações futuras sem o risco de reduções culturais é o principal objetivo e um grande desafio. “O maior risco, quando se fala em levar Goiás para fora de Goiás, é a tentação de resumir tudo ao que já é óbvio ou ao que já foi cristalizado no imaginário coletivo. Goiás é muito mais que um gênero musical ou uma imagem folclorizada; o sertanejo raiz é nosso, claro, e é motivo de orgulho, mas a arte contemporânea também é, o cinema, o teatro experimental, o hip hop das periferias de Goiânia, as artes visuais que nascem de coletivos jovens, tudo isso também é Goiás. Trabalhamos com curadoria técnica, diálogo permanente e a responsabilidade de mostrar um Goiás real, múltiplo e vivo. O Memorial da América Latina é palco para essa complexidade e nossa missão é não simplificar o que é, por essência, diverso”, salienta.
Mais do que um conjunto de apresentações em palcos ou salas expositivas, o que Goiás busca mostrar em São Paulo é uma forma de viver e sentir a cultura. Como afirma Yara Nunes, “a cultura não é só o que sobe ao palco, mas também o que se cozinha no tacho, o que se toca nas violas, o que se conta nas varandas e o que se reza nas noites de fé”. É essa noção de cultura como existência que orienta a parceria em construção. A cultura goiana pulsa nos bastidores, nos quintais, nas rodas de conversa e nos gestos cotidianos que, mesmo longe dos holofotes, sustentam a identidade de um povo. “Goiás ensina que cultura se sente, se compartilha e se guarda como parte da nossa história de vida”, completa a secretária.
Esse entendimento mais amplo e sensível é também um convite a pensar o Brasil por outras lentes. “Acredito que o Brasil que ainda não foi suficientemente contado é o Brasil das margens, das periferias urbanas, das comunidades quilombolas, dos povos indígenas em contexto urbano e rural, das mulheres negras artistas, dos jovens criadores das quebradas”, afirma Sacha Witkowski, Gerente de Editais de Arte e Cultura de Goiás. Para ele, expandir o olhar sobre o seu estado é também abrir espaço para esse “Brasil das culturas, com ‘s’ mesmo”, como ele enfatiza. Um Brasil que vai além da narrativa centralizada nos grandes eixos, e que emerge quando se garante circulação e investimento real em políticas públicas inclusivas.
É nesse espírito que Goiás se apresenta: não para reforçar o que já se conhece, mas para ampliar o repertório. A intenção é fazer do Memorial da América Latina um território de trocas, onde a complexidade da cultura goiana possa ser reconhecida em sua diversidade e profundidade. Como pontua Yara, “esse deslocamento não é apenas geográfico, é também simbólico: é a chance de afirmar a força criativa de Goiás e mostrar que nossa cultura tem lugar e voz em qualquer parte do Brasil”.
A iniciativa de Yara Nunes é bem acolhida por João Carlos Corrêa, diretor de Cultura do Memorial da América Latina, que destaca o papel da instituição como caixa de ressonância da produção cultural brasileira para os países irmãos de habla hispânica, da mesma forma que acolhe e atua como difusor da cultura latino-americana no Brasil. “Essa proposta de parceria com a Secretaria de Cultura do Estado de Goiás, que traz a riqueza artística goiana para o Memorial, possibilita ampliar nossa capacidade de apresentar a diversidade brasileira em nossos palcos, salas de exposição e através de nossos canais de comunicação, de forma a ser um agente ainda mais poderoso na polivisão das latinidades, apresentando novos sotaques, vivências e vozes de nosso Brasil latino, que nos torna ainda mais unos ao continente”, enfatiza.
Nessa travessia entre territórios e sensibilidades, iniciativas como o FICA (Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental), já célebre e realizado na histórica cidade de Goiás, ganham um significado ainda mais potente. “O FICA é muito mais do que um festival de cinema, ele é um espaço simbólico de articulação entre arte, meio ambiente e os modos de vida que sustentam a diversidade cultural e ecológica do país”, afirma Sacha Witkowski. Num cenário global marcado por conflitos, seja na esfera ambiental, ideológica ou social, o festival se destaca como um lugar de escuta, de construção coletiva e de resistência sensível. “O FICA nos ajuda a compreender que proteger o planeta passa também por proteger os saberes, as línguas, os corpos e os modos de existência que historicamente cuidam da terra, da água, das florestas e das cidades”, completa, desejoso que essa possível parceria resulte também na extensão dessa mostra cinematográfica, em formato reduzido, para exibição no Memorial.
Encerrar essa matéria é, na verdade, continuar uma conversa que precisa se espalhar. A parceria entre Goiás e o Memorial da América Latina aponta para uma virada necessária: sair da lógica de centro e periferia e reconhecer que a força cultural do Brasil está em todas as direções. “Mais do que um evento pontual, o que queremos é que essa ação fique marcada como um momento de virada na forma como Goiás é percebido no cenário nacional”, diz Yara Nunes. Com essa carta de intenções evoluindo para ações concretas, como se espera, ela pode abrir caminho para algo maior: um Brasil onde os estados não sejam convidados ocasionais, mas protagonistas permanentes de um diálogo plural. Onde o que é regional não seja tratado como curiosidade, mas como parte essencial da identidade nacional. “No fim, estamos falando de construir um Brasil culturalmente mais equilibrado, onde os diferentes territórios tenham voz e vez. Se conseguirmos ampliar esse olhar, já teremos deixado um legado importante”, conclui Yara.

Divulgação/Kamilla Brandão