REPORTAGEM
Vá para Cuba, mas só se estiver com o coração aberto
A ilha por meio de três diferentes olhares: o de um médico cubano, de um viajante e de um Nobel
Por Renata Santos
Fotos por Divulgação/Ministério do Turismo de Cuba
Como enxergar um país sem os filtros da polarização, dos estigmas ideológicos e do conhecimento superficial que tantas vezes se transforma em preconceito? Como acessar a dor e a beleza de um povo além das narrativas oficiais?
A Revolução Cubana, iniciada em 1959 sob a liderança de Fidel Castro e Ernesto “Che” Guevara, marcou o século 20 e segue sendo pauta de discussões inflamadas. Mas, para além dos discursos políticos, o que pulsa no coração de um cubano? De onde vem tamanha generosidade, arte, empatia e alegria?
Durante os anos de polarização política no Brasil, a frase “Vá para Cuba” foi usada de forma pejorativa. No entanto, a verdadeira viagem a Cuba,vivida, sentida, compreendida, está longe de ser um castigo. Cuba pode ser compreendida de dentro e também admirada por quem a observa de fora. É isso que revelam os três olhares reunidos neste texto: o de um cubano nascido na ilha, o de um brasileiro encantado e o de um escritor norte-americano que escolheu a ilha caribenha como lar por mais de duas décadas.
O olhar de quem veio para cuidar
Em março de 2014, o médico cubano Dr. Yosbel Díaz chegou ao Brasil pelo programa Mais Médicos, criado no ano anterior pelo Governo Federal para suprir a falta de profissionais de saúde em regiões periféricas e remotas. Nascido e criado em Cuba, Yosbel foi um dos cerca de 15 mil médicos que atuaram no país.
Após um curso intensivo de português, passou a atender diretamente comunidades locais. Durante a entrevista, ele afirmou nunca ter sofrido preconceito direto dos brasileiros, ainda que colegas relatem experiências diferentes. A forma como se adaptou e foi acolhido parece refletir sua própria maneira de estar no mundo: com empatia e humanidade. “Eu vim para trabalhar. Era um contrato de 36 meses. Não me envolvia muito com política, estava focado no atendimento às pessoas”, contou, ao comentar sobre a comparação entre a polarização política brasileira e cubana.
O Dr. Yosbel vive a medicina de forma descomplicada e afetiva. Mesmo fora do programa oficial, continua atendendo amigos e vizinhos gratuitamente, inclusive em casa, quando necessário. “São amigos. Vou cobrar por quê?”, responde ele, para quem o jeito de ser do brasileiro e do cubano não é tão diferente. “Gostam de música, de comida, da família. Claro que há diferenças culturais, mas temos muitas semelhanças.”
O escritor que virou vizinho
Ao ser perguntado sobre Ernest Hemingway, o médico Dr. Yosbel sorri. “Já fui na casa dele. Morava em Havana, então visitei o museu dele algumas vezes. Hemingway morou mais de 20 anos em Cuba”, fala com orgulho, como quem se refere a um parente distante. “Ele saía para pescar com os pescadores, não ficava só escrevendo na beira da praia. Virou parceiro.”
A obra mais simbólica dessa relação é o livro O velho e o mar, escrito em 1951 enquanto o autor vivia na Finca Vigía, sua casa em Havana. A publicação, que rendeu o Prêmio Pulitzer e contribuiu para o Nobel de Literatura, conta a história de Santiago, um velho pescador cubano que, após 84 dias sem pescar nada, enfrenta o mar em busca de um grande peixe. Mais do que metáfora de resistência, a obra é um retrato da força e da alma cubanas.
A ilha, tantas vezes retratada como sinônimo de escassez, é também um país abundante em solidariedade, cultura, música e valores comunitários. “Sinto saudade das praias, da cultura, da educação. Lá é muito difícil ver pessoas em situação de rua. O risco de roubo e assalto é muito menor”, diz Yosbel, com certa nostalgia. A ética humanista que carrega não é discurso: é prática.
Memória e identidade
João Carlos Corrêa voltou de Cuba com muito mais do que lembranças. Em apenas dez dias, conheceu um povo que resiste com dignidade, acolhe com generosidade e ensina, mesmo sem intenção, uma das lições mais urgentes da América Latina: conhecer e preservar sua história. “Antes de ir, confesso que não sabia bem o que esperar. Vi vídeos, documentários, ouvi amigos, muitos bem intencionados, outros enviesados. Fui preparado para a pior escassez, crise, abandono. Mas me recusei a acreditar que Cuba se resumia a isso. Fiz bem”, conta ele, que é diretor de Atividades Culturais do Memorial da América Latina.
O que encontrou foi um país com feridas abertas, sim, mas também com uma força cultural imensa. Em Havana, prédios desbotados convivem com escolas de arte, vozes cantando nos becos, crianças correndo entre ruínas que resistem ao tempo. “O povo cubano tem um orgulho visceral de sua cultura.
Compartilham histórias com generosidade. Querem aprender e ensinar. Em nenhum momento me senti inseguro. Andar pelas ruas foi mais tranquilo do que caminhar por certas regiões do meu próprio país.”
A comparação com o Brasil surge naturalmente. “Muitas vezes temos uma visão distorcida de Cuba. É uma imagem forjada por disputas políticas ou pela ignorância. Esquecemos das mazelas que enfrentamos aqui. Basta olhar para as periferias das nossas capitais. A diferença é que, em Cuba, a consciência histórica parece mais presente.”
Essa consciência se revelou em um encontro marcante nas ruas de Havana Velha. Lá, João Carlos conheceu um cubano que falava português fluentemente. Era apaixonado pelo Brasil, lia livros de autores brasileiros e assistia às novelas. “Conversamos por horas. E o que mais me surpreendeu foi perceber que todos os cubanos que conheci sabiam profundamente a história do seu país. Um deles me disse: ‘Aprendemos nossa história para que ela não se repita’. Isso me marcou.”
A ilha que resiste
Há quem vá a Cuba em busca de um passado romântico. Outros esperam encontrar apenas ruínas. João Carlos, brasileiro, voltou com reconhecimento. Em dez dias caminhando pelos becos da Havana Velha, viu a beleza e a escassez, mas também escutou histórias que desafiam estereótipos e expõem feridas que não são só cubanas.
Já Hemingway, apaixonado pela pesca, pelo povo e pela cultura cubana, dizia: “Cuba é o único lugar no mundo onde me sinto em casa como em nenhum outro”. Essa é a terceira presença indispensável nesse trio de olhares.
Talvez o que uniu Hemingway e João Carlos, separados por quase um século, tenha sido algo simples e profundo como a descoberta de um lugar onde o tempo corre em outro ritmo. Onde, apesar das dificuldades, a vida funciona com intensidade rara. João conta que nunca se sentiu tão seguro quanto andando pelas ruas de Havana. Hemingway, por sua vez, confiava tanto em seus vizinhos que deixava manuscritos e objetos de valor à vista em sua casa aberta ao sol. O Dr. Yosbel, com sua generosidade cotidiana, reafirma esse sentimento através do seu trabalho.
No fim, João Carlos Corrêa voltou ao Brasil com um pedaço de Cuba no peito. Yosbel nos presenteia com sua ética e cultura. E talvez possamos entender, tal como Hemingway, que há lugares no mundo que não se visitam, se reconhecem.