PERFIL

Crédito: Annemarie Heinrich / Wikimedia Commons
Enquanto tiverem algo a dizer, ela seguirá cantando
Conhecida como ‘a voz da América Latina’, Mercedes Sosa é eternizada como símbolo da memória e da justiça, inspirando novas gerações com sua arte e resistência
Por Isabelle Zanardi
Se estivesse viva, Mercedes Sosa teria completado 90 anos em 9 de julho de 2025. Mas a cantora argentina, falecida em 2009, permanece viva em cada canto de resistência e em cada verso que ecoa dignidade. Referência incontornável da música mundial, ela atravessou fronteiras com uma voz poderosa e uma postura ética que jamais se curvou. Sua arte, profundamente conectada às causas populares, se transformou em símbolo de um continente inteiro.
Nascida Haydée Mercedes Sosa, em San Miguel de Tucumán, no norte da Argentina, filha de um açougueiro e de uma lavadeira, cresceu rodeada pelas tradições folclóricas de seu povo. Aos 15 anos, se inscreveu às escondidas em um concurso de rádio e venceu. Era tímida, quase silenciosa, mas aquela adolescente que pisou no palco pela primeira vez jamais sairia de cena.
Nos anos 1960, ao lado de artistas e poetas como Armando Tejada Gómez e Ariel Ramírez, se envolveu com o Movimiento del Nuevo Cancionero, que propunha renovar o folclore argentino. Um de seus lemas dizia que “a canção não é para alienar, é para libertar”. Essa frase se tornou seu norte. Desde então, Mercedes cantou como quem abre caminhos e sua música se tornou veículo de resistência, ressonando com os desejos de uma América Latina em transformação.

Crédito: Annemarie Heinrich / Wikimedia Commons
Uma década depois, o continente estava tomado por regimes militares. Na Argentina, foi instaurado o medo e a censura, mas Mercedes não se calou. Continuou denunciando, cantando, incomodando. Pagou o preço: discos proibidos, shows cancelados, ameaças de morte. O momento mais simbólico dessa perseguição aconteceu em outubro de 1979. Durante um show em La Plata, Mercedes foi presa no palco junto com toda a plateia. Enquanto a cantora era escoltada para fora, o público detido ousava cantar em solidariedade. Não houve silêncio. Pouco depois, Mercedes partiu para o exílio. Viveu em Madri e Paris, sem jamais se afastar da América Latina que habitava seu peito. Como ela mesma resumiu: “Não posso calar, mesmo que meu canto me custe a vida”.
O retorno da artista à Argentina, em 1982, após a redemocratização do país foi emblemático. Seu show no Teatro Ópera, em Buenos Aires, foi transmitido para milhões de argentinos ávidos por se reencontrarem com a liberdade e com seus símbolos culturais.
Em sua trajetória, a cantora construiu pontes importantes com o Brasil e essas não foram apenas artísticas, mas também afetivas e políticas. Suas colaborações com Milton Nascimento, Beth Carvalho, Chico Buarque, Fagner, Gal Costa e Caetano Veloso são exemplos de um intercâmbio profundo entre vozes que, em diferentes cantos da América Latina, partilhavam os mesmos ideais de liberdade, justiça e beleza. Com Milton, em especial, Mercedes viveu uma amizade fraterna e musical que deixou registros inesquecíveis, como sua interpretação de Cio da terra, canção que transformou em um hino de reverência à natureza e a emocionante participação conjunta no Festival de Montreux, na Suíça, onde dividiram o palco sob aplausos.
Essa aproximação com o Brasil foi algo natural. A música popular brasileira, assim como o Nuevo Cancionero argentino, sempre foi território de reflexão social e espiritualidade profunda. Ao cantar músicas brasileiras, Mercedes atravessava a língua e celebrava a irmandade continental. Sua voz se harmonizava com a de Chico Buarque como quem recita um manifesto e com Gal Costa como quem tece um manto ancestral de afetos. As parcerias se tornaram pontes entre povos, línguas e memórias e afirmaram a arte como linguagem comum para os que sonham com um continente mais justo e sensível.

Crédito: Wikimedia Commons
Mercedes Sosa faleceu em 4 de outubro de 2009, aos 74 anos, em Buenos Aires. Complicações respiratórias e renais a levaram, após quase um mês de internação no Hospital de la Trinidad. Sua morte encerrou mais de cinco décadas de música, cultura e defesa intransigente dos direitos humanos. A notícia comoveu o mundo. O velório ocorreu na sede do Congresso Nacional argentino, reservado a figuras de imensa relevância pública e milhares de pessoas formaram longas filas para se despedir. Governos, artistas e movimentos sociais renderam homenagens. A então presidente Cristina Kirchner, acompanhada do ex-presidente Néstor Kirchner, visitou a capela onde Mercedes repousava e declarou: “Mercedes Sosa será inigualável. Dói perder um ser humano e uma cantora insubstituível”. O governo decretou três dias de luto nacional. No decreto, ela foi descrita como “símbolo inconfundível da música argentina” e “férrea defensora dos direitos humanos e das causas justas”.
Mesmo após a sua partida, seu legado continua firme e forte. Em 2021, na época do lançamento da biografia Mercedes Sosa: A voz da esperança, em entrevista ao site Brasil de Fato, a autora Anette Christensen destacou: “O contexto político mudou, mas a vida e a obra de Mercedes Sosa são mais relevantes do que nunca”. Dois anos depois, durante evento na Embaixada da Argentina no Brasil, a Ministra da Cultura, Margareth Menezes, reafirmou: “As canções de Mercedes Sosa transmitiram mensagens de esperança, justiça e amor, inspirando pessoas de todas as origens a se unirem em busca de um mundo melhor”.
Dezesseis anos após sua morte, a cantora permanece insubstituível. Sua imagem, envolta em poncho andino e com os cabelos soltos, está estampada em murais, capas de discos, livros e documentários. Ela é lembrada como quem nunca se permitiu a indiferença e sua obra é a lembrança de que a arte pode e deve ser instrumento de humanidade.
E como ela mesma dizia: “Enquanto alguém tiver algo a dizer através de mim, seguirei cantando”. E assim será. Mercedes seguirá cantando por meio da memória e da luta, firmada na esperança de um continente que ela ajudou a construir com sua voz, sua coragem e sua inabalável paixão pela justiça.