Por Isabella Vilela
Muito além do tango, do vinho e das praias de Punta del Este, o Uruguai guarda tradições culturais, políticas e sociais que raramente chegam ao nosso olhar. Para apresentar essas nuances e celebrar o Dia Nacional do Uruguai, o Memorial da América Latina conversou com a embaixadora Marta Echart. Em um diálogo aberto e apaixonado, ela traça um retrato do país vizinho, suas raízes históricas, conquistas democráticas, singularidades culturais e até memórias pessoais que revelam a essência uruguaia.
Falar sobre o país é, para Marta, quase um ato de afeto. “Posso falar do meu país a tarde inteira, à noite e até amanhã”, diz, entre risos, logo no início da conversa.
Se no Brasil a imagem projetada ao exterior ainda costuma ser resumida a samba, futebol e carnaval, a diplomata aponta para algo mais profundo, que reside na alegria de viver como marca do povo brasileiro. “Mesmo em meio a dificuldades, o brasileiro escuta música e compartilha. Isso não se vê em outros lugares”, observa. No Uruguai, segundo ela, a escala é outra: “Pequenos pela própria natureza, mas acolhedores. Se alguém se perde na rua, o comerciante fecha a loja, acompanha até o destino e ainda convida para uma cerveja. Esse é o espírito uruguaio.”
A convivência democrática também é destacada pela embaixadora. “O Uruguai tem diferenças políticas, mas no exterior estamos sempre juntos”, diz. Como exemplo, lembra a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 2023, quando ex-presidentes uruguaios de correntes distintas — José Mujica, Julio María Sanguinetti e Luis Alberto Lacalle — participaram da mesma comitiva. Para Marta, isso mostra o verdadeiro sentido da nossa democracia.
O próprio nome do país carrega raízes identitárias. Em guarani, “Uruguai” significa Rio dos Pássaros Pintados. Compartilhando fronteiras com Brasil e Argentina, guarda também disputas de origem cultural. “O tango não é argentino, é do Rio da Prata, do Uruguai e da Argentina. E Carlos Gardel nasceu em Tacuarembó, no Uruguai. Tenho a certidão de nascimento dele”, ressalta.
O tango é, sim, um símbolo uruguaio, mas acompanhado da milonga, uma dança mais rápida, cadenciada, como a gafieira no Brasil. Há ainda o Pericón Nacional, considerada a dança típica do gaúcho uruguaio, com 12 pares vestidos em trajes brancos e celestes, as cores nacionais. A coreografia inclui versos declamados em diálogo entre homens e mulheres, e está intimamente ligada ao processo de independência, datada em 25 de agosto de 1825.
Echart conta que sua relação com o tango passou por ajustes. “Meu professor me disse: ‘Não ria da nossa música, o tango é triste’. Mas eu encaro a tristeza como os brasileiros: com sorriso.”
Se há uma marca que distingue o Uruguai no cenário latino-americano, é a educação. O sistema de educação é gratuito e laico até a universidade. “Se a família não pode pagar uma instituição privada, há a pública e de altíssima qualidade.” A embaixadora, formada em escolas públicas, lembra que o ingresso exige vestibular, mas quem se destaca tem prioridade em cargos públicos. Bolsas de mestrado, doutorado e intercâmbio são oferecidas em convênio com diversos países, inclusive o Brasil.
Sua própria trajetória é exemplo: começou a carreira na educação infantil, especializando-se em direção e inspeção escolar, até se tornar diplomata.
No cotidiano uruguaio, o chimarrão ocupa um lugar central. “Para mim, é um ritual. Se não tomo pela manhã, fico de mau humor”, brinca. Muito além de uma simples bebida, o mate é um elo cultural: “Sozinho, com amigos ou em família, ele sempre acompanha. É uma forma de partilha, de vínculo.”
A gastronomia também traz sabores singulares. O asado con cuero, bezerra assada lentamente com a pele voltada ao fogo, é prato tradicional. Já as tortas fritas, massas doces passadas no açúcar, são inseparáveis da roda de chimarrão.
Do ponto de vista turístico, o país mescla sofisticação e tradição. Montevidéu preserva seu centro histórico; Colônia do Sacramento, fundada por portugueses em 1680, é Patrimônio da Humanidade; Punta del Este, com praias e vida cultural, atrai cada vez mais os brasileiros.
Além dos ícones, há experiências mais discretas, como as estâncias turísticas que apresentam a vida rural, termas naturais em Arapey e Daymán, e praias acessíveis como Piriápolis e Atlántida. “É turismo cultural e de bem-estar, que conecta o visitante com o país real”, resume.
Ao falar de política, a embaixadora destaca o impacto internacional da figura de José Mujica, a quem conheceu de perto. Mesmo divergindo de sua ideologia, relata episódios de convivência que marcaram sua trajetória.
Em uma visita à Galícia, Mujica recusou hospedagem oficial e ficou em sua casa, levando apenas uma mala com poucas roupas. “Comprou um suéter verde porque sentiu frio. Anos depois ainda o usava, cheio de bolinhas, dizendo: ‘Sou feliz com meu suéter de bolinhas’.”
Emocionada ao falar do ex-presidente, a embaixadora conta que mais do que estilo de vida, Pepe foi exemplo de humanidade. “Quando saiu da prisão, agradeceu aos militares que o haviam torturado e seguiu em frente. Ele me ensinou que o melhor insulto é desejar o bem e se afastar.”
Para os brasileiros, Marta deseja que o Uruguai seja visto como “um país amigo, que valoriza a democracia e sabe negociar sem perder a identidade”.
A relação comercial entre os dois vizinhos é equilibrada, sendo o Brasil o segundo maior parceiro depois da China. Entre os produtos exportados estão carne bovina, cordeiro, lácteos, couro, queijos, doce de leite e caminhões.
Entre tradições, educação exemplar e convivência democrática, o Uruguai que a embaixadora apresenta vai muito além dos estereótipos. É um país pequeno em tamanho, mas de presença generosa e sólida no continente.