COLUNA

João Carlos Corrêa
Diretor Cultural e Chefe de Gabinete da Presidência da Fundação Memorial da América Latina
Especialista em Gestão Cultural e Indústria Criativa (PUC-RJ); Jornalismo Cultural e de Entretenimento (Belas Artes-SP); e mestrando em Gestão e Políticas Públicas (IDP-SP)
O verdadeiro valor da cultura não cabe em planilhas
Sexta-feira, 22 de agosto de 2025
Em um mundo voltado a valores expressos por números e resultados financeiros, instituições culturais e de cunho acadêmico como o Memorial da América Latina são constantemente desafiadas a provar seu valor. Entendo, porém, que a verdadeira medida não está em planilhas orçamentárias e nas métricas financeiras, mas em seu impacto intangível como espaço de ativação popular, patrimônio vivo e exercício da cidadania, conceitos que tive a oportunidade de explorar em recente estudo que realizei sobre as dinâmicas urbanas do Memorial, e que ora me ajuda a iluminar esta reflexão.
Um espaço monumental só ganha vida quando apropriado pela população. O Memorial, com sua Praça Cívica concebida por Niemeyer, foi projetado para ser esse palco de sociabilidade. Eventos como o Festival Comidas do Mundo, a se realizar no próximo mês de setembro, e as demais feiras gastronômicas e culturais que ocorrem ao longo do ano, realizados em parceria com a iniciativa privada e com os consulados latino-americanos, são a materialização desse ideal. Eles transformam a arquitetura monumental em um ponto de encontro intercultural, popular e, de muitas formas, acadêmico, onde a identidade do continente é celebrada não como uma abstração, mas na vivência concreta de sua música, sua gastronomia e sua arte.
Esta é a resposta da gestão cultural de nossa Fundação Memorial da América Latina à crítica de um suposto “esvaziamento funcional” entre os grandes eventos. Cada festival, cada feira, é um ato de resistência contra isso, um esforço para tornar a ativação constante e não episódica, e temos avançado com sucesso nesta pauta. Essa mudança de paradigma será tema de um estudo ao final da atual gestão, dado o esforço para percepção do valor público que estamos agregando ao Memorial com essas ações.
No campo do patrimônio, o Memorial enfrenta o desafio de ser mais do que apenas um lugar de memória do passado, para se converter realmente em um espaço das “memórias vivas” do presente, que permeiam São Paulo. A presença de comunidades migrantes de bolivianos, peruanos, colombianos, paraguaios e tantos outros é a América Latina real e contemporânea à nossa porta. Incorporar plenamente suas vozes na programação e no discurso institucional não é uma concessão, é uma obrigação patrimonial, e temos perseguido cumprir esse ideal. É como garantimos que este símbolo da integração continental não se monumentalize de forma desconectada, mas se renove constantemente como um patrimônio dinâmico e representativo.
Entendo que o valor do Memorial está bem consolidado na esfera do urbanismo e da cidadania. Sua implantação no bairro da Barra Funda reconfigurou a região, atraindo fluxo cultural e econômico. No entanto, seu maior desafio continua sendo assegurar o direito à cidade para todos, garantir que o espaço seja um bem comum, acessível e apropriável democraticamente. É combater qualquer barreira simbólica ou socioeconômica que possa impedir a apropriação plena desse bem coletivo por qualquer cidadão.
Não tenho dúvidas em dizer que o verdadeiro valor do Memorial é intangível e multidimensional. É o valor de ser um caminho para a ativação simbólica, o observatório de um patrimônio em evolução e um promotor da cidadania cultural. Seu significado vai além, em muito, de seu valor contábil, residindo exatamente em sua capacidade de todos os dias reafirmar na prática o pertencimento do Brasil à América Latina e oferecer um pedaço dessa pátria grande para ser vivido, celebrado e disputado por todos.