COLUNA

João Carlos Corrêa
Diretor Cultural e Chefe de Gabinete da Presidência da Fundação Memorial da América Latina
Especialista em Gestão Cultural e Indústria Criativa (PUC-RJ); Jornalismo Cultural e de Entretenimento (Belas Artes-SP); e mestrando em Gestão e Políticas Públicas (IDP-SP)
O espelho quebrado: a mídia e o apagamento da América Latina
Sexta-feira, 8 de agosto de 2025
“Somos reféns de um espelho quebrado: vemos a Europa e os Estados Unidos em cacos dourados, enquanto a América Latina é só um vago reflexo na poeira. A pergunta não é por que não nos reconhecemos no continente, mas quem quebrou o espelho e por quê.” – J.C.C.
A Biblioteca Latino-Americana Victor Civita, no coração do Memorial da América Latina, guarda um tesouro de 42 mil itens, das ciências sociais à cultura popular, da literatura à história econômica do continente. Um acervo que respira a pluralidade de vozes do Equador ao Uruguai, do México à Argentina. Mas quantos paulistanos, diante da imponência do vão de 90 metros desenhado por Niemeyer, cruzam suas portas? Quantos sabem que ali repousam 9.800 obras raras, testemunhas incontestáveis de uma história compartilhada? A resposta ecoa como um triste diagnóstico: somos reféns de uma narrativa midiática que reduz a América Latina a ruínas, violência e caos.
A cobertura midiática brasileira sobre a América Latina privilegia desastres e conflitos, enquanto iniciativas de real poder transformador são marginalizadas. A revolucionária parceria educacional Brasil-Uruguai em audiovisual, que formou 42 estudantes via filmes-carta em 2021, o cinema indígena boliviano e as cooperativas tecnológicas chilenas mal alcançam 5% do espaço noticioso. Essa não é uma lacuna acidental, mas apagamento estrutural. Herdamos a geografia do olhar colonial: redações mantêm correspondentes em Paris, mas não em Assunção; analisam o Brexit minuciosamente, enquanto reduzem a crise peruana a ‘distúrbios andinos’. Como alertou Darcy Ribeiro, construímos nossas capitais ‘de costas para o continente’
O caso da Reserva Chico Mendes é um bom exemplo dessa distorção midiática. Quando as invasões de grileiros atingiram níveis recordes em 2023 (desmatamento 25% maior que no ano anterior), a cobertura reduziu o conflito ao maniqueísmo do ‘boi ilegal vs. árvore’. Omitiu-se que redes transnacionais atuavam na reserva, com ramificações no Peru e Bolívia, enquanto equipes de fiscalização brasileiras usavam drones para mapear crimes ambientais, tecnologia quase invisível nos noticiários. Noticiamos a morte da floresta, mas silenciamos as vozes dos defensores ameaçados, como Raimundão (primo de Chico Mendes), e o projeto de lei 6024/2019 que tenta desafetar áreas protegidas para grileiros. É mais fácil chorar uma árvore do que decifrar o processo político que a derruba. Outro caso emblemático que podemos destacar é que enquanto a imprensa peruana denunciava o vazamento de óleo em Ventanilla, ligado a empresas com atuação no Brasil, nossas redações tratavam o caso como ‘acidente local’. A mesma lógica do espelho quebrado, enxergando só os cacos, nunca o todo continental.
Contra esse esquecimento fabricado, insurgem-se mapas alternativos. A rede Latam Chequea desmonta fake news em 18 países, nos dando o alento de perceber que a mentira não tem pátria, mas a verdade pode ser continental. No Rio de Janeiro, o coletivo Nexo Malba conecta favelas de Caracas, Medellín e São Paulo em lives mensais, onde a “latinidade da pobreza” vira potência narrativa. E, na Biblioteca Victor Civita, filmes que vão de ficção cubana a documentários mapuches, aguardam olhares que a grande imprensa não direciona. Afinal, quantos brasileiros sabem que ali está um dos maiores acervos de cinema latino-americano?
Falando em apagamento e cultura, sempre é bom refletir sobre filmes como “Utama” (Bolívia) ou “Los Silencios” (Colômbia-Brasil), premiados no exterior, mas que são tratados como curiosidade exótica por aqui.
Faz-se urgente um novo contrato de olhares. Precisamos não só de mais notícias sobre vizinhos. O que precisamos de verdade é de um pacto ético que entenda a América Latina não é somente um conjunto de manchetes, mas sim um corpo que cria e resiste em conjunto. Enxergá-la só pelo olhar do caos é perpetuar a violência colonial que nos dividiu.
O Memorial da América Latina, através do CBEAL Centro Brasileiro de Estudos da América Latina, já costura essa rede, com seminários com a USP e Unicamp, a revista Nossa América e a Cátedra UNESCO. Além disso, foi criada uma estrutura de inovação e cooperação, ligada ao gabinete da presidência do Memorial que já traz no seu nascedouro o projeto Hub da América Latina, para estreitar ainda mais as distâncias continentais. Mas é preciso mais. Que tal um “Observatório de Narrativas Continentais”, unindo coletivos midiáticos de Bogotá a Salvador? Ou iniciar uma campanha institucional para que as redações apresentem um “Índice de Diversidade Latino-Americana”. Saber delas quantas fontes paraguaias, bolivianas ou colombianas foram ouvidas a cada mês? A Biblioteca Victor Civita, com seu acervo de 42 mil vozes, e o Hub da América Latina, podem ser a âncora desse projeto.
A descoberta da nossa latinidade não se fará por decreto ou nostalgia, mas pelo ato radical de descolonizar o olhar. Se a mídia nos ensinou a ver o continente como um cadáver, cabe a nós, cidadãos, artistas, instituições e gestores da memória, mostrar que ela pulsa, inventa e se rebela. Não somos ilhas de desinformação, mas redes de rádio sintonizadas na mesma frequência, e é sobre isso que devemos pautar a mídia. Como escreveu Édouard Glissant, “existe um continente escondido em cada um de nós. É preciso navegar nele sem mapas prévios”.
Deixo aqui uma provocação final: você sabe nomear um intelectual paraguaio vivo? Se a resposta for “não”, este texto cumpriu seu papel. Mas a solução está a 15 minutos do Centro de São Paulo, na estante 14 da Biblioteca Victor Civita. Basta atravessar o espelho quebrado.