COLUNA

João Carlos Corrêa
Diretor Cultural e Chefe de Gabinete da Presidência da Fundação Memorial da América Latina
Especialista em Gestão Cultural e Indústria Criativa (PUC-RJ); Jornalismo Cultural e de Entretenimento (Belas Artes-SP); e mestrando em Gestão e Políticas Públicas (IDP-SP)
O paradoxo da identidade latina e o despertar decolonial
Sexta-feira, 25 de julho de 2025
Somente cerca de 4% dos brasileiros se reconhecem como “latino-americanos”. Este dado, extraído de um estudo do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP) em parceria com o Centro de Investigación y Docencia Económicas (CIDE) do México, contrasta brutalmente com a média de 43% em países como Argentina ou México. E aqui reside nosso paradoxo histórico: enquanto rejeitamos o rótulo, 66% de nós acreditam que o Brasil deve representar a região no Conselho de Segurança da ONU. Desejamos liderar um clube ao qual relutamos em pertencer. Esta ambivalência não é acidental e, sim, a herança de uma ferida colonial que teima em não cicatrizar.
Nossa desconexão com a latinidade tem raízes profundas e dolorosas. Enquanto a América hispânica forjou sua identidade no fogo das guerras de independência contra a coroa espanhola, o Brasil manteve laços umbilicalmente coloniais com Portugal, criando um isolamento que se transformou em mito fundador. A língua portuguesa, longe de ser apenas um idioma, ergueu uma muralha simbólica. Como bem aponta o pesquisador argentino Fernando Mourón (USP), o conceito de “América Latina sempre se associou à colonização espanhola”, excluindo o Brasil de um imaginário continental. Alimentamos a narrativa da excepcionalidade: somos um “país continente”, uma democracia racial”, como um biombo para ocultar nossa inegável pertença geográfica e cultural.
É precisamente aqui que a Teoria Decolonial, intensamente discutida em núcleos acadêmicos da USP e da Universidade de Brasília (UNB), lança luzes. Pensadores como Aníbal Quijano e Enrique Dussel apontam que esta rejeição à latinidade não passa de um eco distorcido do projeto colonial. O próprio conceito de “Latina” surgiu no século 19 como muro de contenção contra o expansionismo anglo-saxão, mas excluiu deliberadamente o Brasil por sua lusofonia, reproduzindo a lógica segregadora europeia.
A decolonização exige que reconheçamos que nossa suposta singularidade é uma armadilha colonial. Como argumentam teóricos inspirados em Theodor Adorno, como Santiago Castro-Gómez, a verdadeira unidade latino-americana reside na diversidade não homogeneizada, nas raízes indígenas sufocadas, nas culturas africanas resistentes e nos fluxos migratórios que nos moldaram, elementos que o Brasil compartilha intimamente com seus vizinhos. Pesquisadores da UNB batem nessa tecla ao criticar o ensino de história que ignora nossas conexões regionais. Projetos como “Práticas Curriculares de Alimentação Saudável em Escolas de Fronteira”, integrado ao Programa de Cooperação Técnica Brasil-Argentina (2023-2025), buscam, nas salas de aula, construir uma consciência histórica latino-americana, desfazendo séculos de isolamento pedagógico.
As expressões culturais, no entanto, sempre foram um caminho para superar esse distanciamento imposto. Na literatura, romances como Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, ajudam a entender que a brasilidade mais autêntica é uma forte e única variação da latinidade. Sua sátira às elites escravocratas ecoa, em tom e fúria, a crítica ao colonialismo que percorre García Márquez ou Carlos Fuentes. Nas ruas de São Paulo, os filhos de imigrantes bolivianos e peruanos, essa “segunda geração latino-americana”, recriam identidades que fundem português e espanhol, desafiando purismos linguísticos e construindo uma linguagem híbrida da resistência. Até nossa malemolência, essa aparente resignação humorada diante do caos, encontra ressonância. Em A fantástica vida breve de Oscar Wao, Junot Díaz consegue dar forma a essa ideia de que compartilhamos com outros povos latinos o “desejo visceral de sonhar alto mesmo com a certeza de que tudo acabará mal”, um realismo mágico às avessas, nascido não do exótico, mas da resiliência.
Reconhecer-se latino transcende geografia ou folclore. É abraçar um projeto político inacabado de libertação coletiva. Como lembra Pierre Bourdieu, as regiões são construídas por relações sociais, não por acidentes geográficos. A América Latina existe como um campo simbólico onde Brasil e seus vizinhos disputam significados e poder. A oscilação brutal entre a busca da integração latino-americana e o isolamento por vezes xenófobo promovido pela alternância política em nosso país é o retrato perfeito dessa ambivalência identitária ainda não resolvida. Para muitos, como aponta Mourón, a região segue sendo vista como “preocupação e problema”, não como lar coletivo. A verdadeira decolonização, no entanto, já emerge das bases. Movimentos indígenas e quilombolas no Brasil agem em redes transnacionais com parceiros andinos, de forma a nos dar o acalanto de perceber que a unicidade latino-americana se forja “de baixo para cima”, nas lutas comuns contra o extrativismo predatório, o racismo estrutural e a violência neocolonial.
O Brasil não é uma ilha solitária à deriva no Atlântico Sul. Nossa música que mistura samba e bachata, nossas crises políticas marcadas por rupturas e resistências pelo continente, nossa mestiçagem celebrada e negada, até mesmo nosso complexo de vira-lata, tão bem diagnosticado por Nelson Rodrigues, são sintomas acentuados de dramas continentais. A decolonização não é nostalgia, alerta o pensador Walter Mignolo, é a chave para entender a herida colonial que carregamos coletivamente. Aceitar a latinidade não dilui a brasilidade; pelo contrário, coloca na vitrine a percepção de que ser brasileiro é, em sua essência mais profunda, parte de um todo maior, ferido, mas indomável.
Somos criaturas de uma metamorfose perpétua, como João Ubaldo Ribeiro tão bem destacou em sua obra, eco involuntário daquele grito libertário de Raul Seixas que nos declarou metamorfoses ambulantes, um povo que renasce das próprias cinzas, mesmo quando não sabe qual rosto escolher.
