Por Tere Chad – Curadora Neo Norte
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Por Tere Chad – Curadora Neo Norte
Quando morei em Londres, em 2016, para fazer meu Mestrado em Artes e Ciências no Central Saint Martins, na University of the Arts London (Universidade de Artes de Londres), desenvolvi, pela primeira vez, um forte sentido de pertencimento à identidade latino-americana. Com tristeza, percebi um forte desconhecimento de nossas culturas na cena internacional e pensei sobre o que estava ao meu alcance. Me deparei com dois manifestos na sociedade Latinos Creative Society, da University of the Arts London, que iniciaram o processo para unificar as culturas que parecem similares, mas que são diversas:
“Uma grande Escola de Arte deveria se erguer aqui em nosso país. (…)
Eu digo Escola do Sul; porque, na realidade, nosso norte é o Sul. Não deve haver norte, para nós, senão por oposição ao nosso Sul.
Por isso agora colocamos o mapa de cabeça para baixo, e então já temos uma ideia justa de nossa posição, e não como querem no resto do mundo. A ponta da América, a partir de agora, prolongando-se, aponta insistentemente para o Sul, nosso norte. (…)”
(Joaquín Torres García, La Escuela del Sur, 1935)
“(…) O espírito recusa-se a conceber o espírito sem corpo. O antropomorfismo. Necessidade da vacina antropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores. (…)
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade.(…)”
(Oswald de Andrade, Manifesto Antropofago, 1928)
[Declaração do Manifesto (2018), Latinos Creative Society – University of the Arts London]
Esses manifestos e uma série de bate-papos com a equipe que desenvolvemos através de workshops de colagem na Universidade despertaram uma necessidade em mim de iniciar a pesquisa sobre como nossa posição geográfica influencia o sentido de inferioridade que, infelizmente, às vezes, construímos sobre nossa identidade. Assisti uma aula de topografia para me aprofundar na composição dos mapas e acabei descobrindo uma coisa que mudou minha concepção do globo. O mapa-múndi que usamos se baseia na projeção de Mercator, do século XVI, que tinha a funcionalidade de facilitar o comércio dos europeus, em especial os venezianos. Essa projeção minimiza as dimensões do hemisfério sul e aumenta as dimensões do norte. Nós temos a impressão de que o tamanho dos países europeus e da América do Norte são maiores, quando, na realidade, a nossa dimensão é maior, mas o desenho faz com que pensemos que o tamanho do nosso território é menor que a realidade. Esse mapa constrói um sentimento de inferioridade, nos fazendo pensar que somos menores. Nesse sentido, a projeção de Peters, do século XIX, que não é utilizada comumente, é a mais assertiva com relação ao tamanho do nosso território geográfico.
Acredito que as culturas do Sul se adaptam melhor às mudanças, com mais flexibilidades, e podem resolver problemas com poucos recursos. Na minha experiência vivendo na Europa, as pessoas entram em colapso quando não têm todos os protocolos resolvidos, por exemplo, um operário é encarregado de mudar a lâmpada elétrica e outro a porta, enquanto nós, estamos acostumados a ter a capacidade de fazer tudo. Por séculos, nós temos uma sobrevalorização da razão sobre a intuição. Quando se estuda, a nível antropológico, os inícios do pensamento abstrato, nota-se a forma de perceber e entender a realidade e trazer um equilíbrio entre a razão e intuição. Depois da Cogito, ergo sum (Penso, logo existo), de Descartes, e das correntes do Iluminismo, que impulsionaram, mais tarde, a Revolução Industrial, a intuição e as artes receberam uma valorização inferior na academia. Por isso, todas as culturas que se conectam mais com a intuição são vistas como inferiores às culturas do Norte, que se percebem como mais produtivas.
Agora, neste tempo de crises, vemos que o sistema de produção e industrialização exacerba a influência nas mudanças climáticas. As culturas do Sul têm uma grande oportunidade para mostrar como sua forma de viver, conectada com a terra e a intuição, pode oferecer soluções. Com o crescimento da inteligência artificial, as culturas do Sul e as nossas indústrias criativas podem oferecer vias para reconectar o sentimento humano e não racionalizar ou “robotizar” as pessoas. Nesse sentido, a Bienal de Stranieri Ovunque, com curadoria de Adriano Pedrosa, é uma verdadeira revolução, porque posiciona o valor cultural do Sul como um ar fresco da criatividade no epicentro da arte global.
O Neo Norte 5.0, que chega ao Memorial da América Latina, pergunta o que aconteceria se o Sul se tornasse o Norte. Para mim, esta é uma dúvida da pesquisa em desenvolvimento. Não vejo como algo fechado, mas como uma pergunta que evolui no tempo e se nutre dos diferentes espaços onde apresento o Neo Norte, e de todas as pessoas que se envolvem no projeto. Uma anedota divertida ocorreu no ano passado, no London Stock Exchange Group, a Bolsa de Valores de Londres, em que fui convidada para apresentar o Neo Norte para o Hispanic Heritage Month, que é o mês da herança hispânica. No dia seguinte, recebi uma mensagem dizendo que, no chat dos participantes do evento, pensavam que a ideia era muito radical. Por isso, é interessante observar como uma simples brincadeira de girar o mapa causa tanta controvérsia. Em um mundo com tanta instabilidade, as culturas do Sul têm o potencial de oferecer e liderar a partir de outras formas de vida mais integradas com a nossa intuição e com o meio ambiente. O Neo Norte 5.0 convida a comunidade a trabalhar com reciclagem de tecidos e performances para propor o nosso Sul como um novo Norte, colocando-o como impulsor da inovação da biodiversidade, da intuição e da criatividade.
Neo Norte 5.0: Tere Chad, Asia Artom, Concepción García Sánchez, Cindy Lilen, Anastasia Marcelja, Giada Marchese, Lidia Maugeri, Debra Pollarino, Ines Rocques, Alessandro Rebesani