Por Daniel Pereira.
Se há um defeito que paulistano não tem, definitivamente, é o tal complexo de vira-latas que o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues cunhou para expressar o atávico hábito de inferioridade do brasileiro diante do resto do mundo. Para não embaçar: paulistano tem um baita orgulho da sua loucura urbana e é visceralmente cúmplice das causas e efeitos das metamorfoses de sua cidade. A bem da verdade, antes e acima de tudo, é preciso dizer que o paulistano carrega no seu DNA social uma característica que o distingue dos demais cidadãos do mundo: a mania de grandeza. Com quantos adjetivos se define uma cidade como São Paulo? Sui generis? Curiosa? Polifônica? Multitentacular? Desmemoriada? Cafona? Engessada? Sexy? Vanguardista… Os poetas, de Mário de Andrade, Tom Zé e Caetano Veloso, gastaram o possível em criatividade para exaltá-la. O pai do concretismo, Haroldo de Campos, comparava São Paulo a um…palimpsesto. (Papel que os gregos usavam para escrever. Como havia escassez, apagava-se o escrito para ser reusado e assim por diante).
O poeta falava do caráter de permanente metamorfose da cidade. Concreto mesmo hoje, grande e saudoso Haroldo, é o seguinte: seja da perifa, bambambã dos jardins, socialite ou periguete, paulistano (a) bate no peito e se ufana de morar na maior cidade da América Latina por razões que a própria razão desdenha. Mas, acredite, ele não faz isso por soberba, narcisismo ou para estabelecer o reverso do complexo de vira-latas. Nem por instinto de sobrevivência. Muito menos para forjar um estereótipo. Os paulistanos têm ene pretextos para comemorar o aniversário de São Paulo a qualquer dia do ano, na laje ou na cobertura, nos bares e nas praças, na alegria ou na tristeza.
Vivemos numa megalópole de quase 12 milhões de habitantes numa área de 1.521.101 km2. A população aqui é maior do que a de 23 estados brasileiros. A capital só não tem mais gente do que os estados de SP, RJ, Minas e Bahia. É a cidade mais populosa das Américas e a sexta do mundo, atrás de Xangai, Bombaim, Karachi, Deli e Istambul.
Esses números, porém, não passam de meras referências geográficas que confirmam o desvairado gigantismo dessa pauliceia que Mário de Andrade antevia em seus devaneios futuristas. O poeta viveu pouco para ver que, noves fora as contraditórias opiniões dos urbanistas – sem ir ao mérito – São Paulo adicionou ao seu perfil a essência da metrópole seminal que diz ao coração de qualquer um que aqui chegue, seja pego pela surpresa do inesperado, como cantou Maysa em Eu e a Brisa, de Johnny Alf, dois cariocas tão paulistanos quanto uma nota de três reais. Aliás, o compositor esteve no centro da polêmica atribuída a Vinicius de Morais, quando ele teria dito que “São Paulo é o túmulo do samba”.
Rezam os alfarrábios que o “desabafo” se deu em uma boate paulistana, em que, regados a muito uísque, o poetinha tentava convencer Johnny Alf a voltar para o Rio de Janeiro. E mais: que a ironia de Vinicius teria sido uma crítica indireta a Adoniran Barbosa. O próprio Adoniran preferiu não alimentar a pendenga.
Numa tarde de um dia qualquer de 1975, plantei-me do lado do sofá em que ele sempre dormia, na recepção da Rádio Eldorado – no mesmo prédio do Estadão, onde eu trabalhava. Nosso João Rubinato roncava firme em cima daquele bigodinho. Fui direto, sem meneios. E ele, mais ainda, com a voz rouquenta que o identificava. “Menino, deixa de bobagem…Isso é intriga da oposição”.
Ajeitou o chapéu e foi. Era mesmo. Haja intriga. Tanto que, só para ficar no camarote, caras como Ruy Castro e Assis Ângelo destrincharam o assunto catedraticamente e puseram uma pá de cal esclarecedora no episódio. Mais do que isso, que venham e contem. Enquanto isso, um brinde a São Paulo!