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Por Daniel Pereira
Referência obrigatória no universo acadêmico quando o tema é demografia, a professora Elza Berquó deu uma autêntica aula magna para a plateia que na última terça-feira (12) lotou o auditório da Biblioteca Latino-Americana na abertura do Seminário Migrações Internacionais, Refúgio e Políticas.
O evento foi realizado pelo NEPO – UNICAMP e pelo Centro Brasileiro de Estudos da América Latina (CBEAL), do Memorial da América Latina, em comemoração ao cinquentenário de criação da Unicamp e contou com a participação de praticamente todos os observatórios e grupos de estudos de migrações do país, além de especialistas do meio acadêmico e gestores de políticas públicas. A Unicamp é uma das três universidades públicas de São Paulo parceiras do CBEAL. As outras são a USP e a Unesp.
Mineira nascida em Guaxupé há 85 anos, Elza Salvatori Berquó pode também ser chamada de cidadã do mundo, tantos caminhos percorreu na sua trajetória acadêmica, desde quando abdicou da matemática, a vocação original, para se dedicar ao estudo da demografia, um novo campo do conhecimento de que foi pioneira no Brasil. Queria usá-lo como ferramenta para tentar compreender parte das transformações da sociedade.
No auge da ditadura, e ainda na USP, sua primeira contribuição foi a criação do Cedip – Centro de Estudos de Dinâmica Populacional – onde iniciou a Pesquisa Nacional de Reprodução Humana, modelo de pesquisa na América Latina, mais tarde abraçada pelo Cebrap, refúgio de intelectuais perseguidos pelo regime militar. Mulher à frente do seu tempo, criou no Cebrap um grupo de pesquisas composto apenas por mulheres negras, experiência inédita quando ninguém falava em sistema de cotas.
Fora das salas da universidade, aposentada compulsoriamente pelo AI-5, Elza Berquó dedicou-se em tempo integral ao estudo da demografia e formou aquela que viria a ser a primeira geração de pesquisadores no Brasil. Em 1982, convidada pela Unicamp, fundou o Nepo – Núcleo de Estudos Populacionais – que hoje leva seu nome.
Estrelas mortas – A pesquisadora dedicou o tópico inicial de sua palestra no Seminário à importância do trabalho desenvolvido pelos observatórios – nada menos do que 20 centros de estudos, cátedras e universidades participaram do evento. À guisa de ilustração, fez uma metáfora com a cena do filme Nostalgia da Luz, do chileno Patrício Gúzman, rodada no deserto de Atacama, onde se iniciavam as escavações para a construção do Alma, que viria a ser o maior conjunto de telescópios do mundo. Conta a pesquisadora:
– Qual não foi a surpresa quando os operários depararam-se com a cena dantesca de cadáveres, quase todos conservados e muitos ainda vestidos, por causa da altitude e do clima seco. Eram os mortos pela ditadura Pinochet no estádio nacional de Santiago do Chile. Quando a notícia chegou na capital, familiares acorreram para o deserto em busca de qualquer indício que pudesse revelar a identidade dos mortos. Em 2011, quando o Alma ficou pronto (seria inaugurado dois anos depois) aquelas mulheres foram convidadas a vasculhar o universo distante e abraçar as luzes que agora, pelas lentes dos possantes telescópios, pareciam tão perto. Essa é a mensagem: elas estavam à procura de estrelas mortas, seus entes queridos. Da mesma forma, assim são os nossos observatórios. Não pesquisam o universo, mas aos nossos pés, trabalham para identificar o que está acontecendo com os seres humanos a partir de ditaduras, ferimentos, mortes, fugas não alcançadas, e usar essas informações para alertar os responsáveis por políticas públicas.
Transfusão – Em outro recorte de sua fala, a professora Elza Berquó aborda a gênese do movimento migratório que tem sido tema midiático recorrente na Europa. Preparando-se para a conferência mundial da população e desenvolvimento realizada em 1994 no Cairo, ela constatou que o envelhecimento da população dos países mais ricos da Europa relacionava-se com os índices muito baixos de fecundidade durante longo período de tempo. Os demógrafos, então, sugeriram a migração de casais jovens, que teriam mais filhos e ajudariam no equilíbrio etário desses países.
– Na minha opinião, porém, a solução não estava apenas no processo migratório. Cunhei, então, a expressão Transfusão Populacional, sugerindo a mistura de sangue novo com sangue cansado, o que poderia prover a mudança necessária no desenvolvimento e na dinâmica demográfica.
A experiência, segundo ela, foi bem sucedida em alguns casos, mas em outros, não, porque os migrantes logo se acostumavam ao seu país de destino. Isso levou à implantação de políticas de não-reprodução nesses países. Ou seja, enquanto no Brasil o crescimento populacional precisava ser controlado, a Europa, diante do fracasso do processo migratório, optou por políticas antinatalistas.
– O que vemos hoje é o reverso de tudo aquilo, com levas de migrantes atravessando fronteiras dos países ricos. Antes, eles é que queriam os migrantes. Agora, são estes que pedem para entrar. Na verdade, o que eles precisam é apenas de uma transfusão de humanidade.