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Saiba mais sobre o espetáculo Stapafúrdyo
A gigantesca tenda de arquitetura ousada que vinha sendo montada cuidadosamente no Memorial há semanas – Raul Barreto que o diga – finalmente viveu sua primeira noite de glória, na quarta, 12 de julho. Todas as 700 cadeiras da bem-estruturada arquibancada em semi-círculo foram tomadas por convidados ansiosos pela pré-estréia. Velhos, crianças, adultos, jovens, gente de circo, artistas, executivos, jornalistas, apoiadores, todos estavam loucos para ver o que o pessoal dos Parlapatões e do Pia Fraus estava aprontando dentro da lona, em um projeto que começou muito antes, em fevereiro deste ano. Sabia-se que o espetáculo tinha um nome meio estapafúrdio e que prometia arrancar da platéia uma sucessão de “ooooh´s” e “ah, ah, ah´s”. Espanto e riso, na melhor tradição circense.
Sabia-se ainda que era uma ousadia para os dois grupos, acostumados ao conforto das coxias dos melhores teatros da cidade. Mas sabia-se também que ambos passam por um momento de expansão em suas trajetórias bem-sucedidas. Eles agora almejam o popular, o grande público, a praça que é do povo. A primeira evidência disso foi “Hércules”, montagem de teatro de rua que encontrou seu locus no Vale do Anhamgabaú, em São Paulo, em abril e maio passados.
Mas eis que surge o palhaço Possolo, em seu jeito meio estapafúrdio de ser, trajando cartola, casaca e calça xadrez. Seria um mestre de cerimônia circense às antigas, daqueles mal ajambrados, se ele não se “atrapalhasse” tanto ao anunciar o próximo número, a troupe de vigorosos atletas/dançarinos cuja coreografia de Jorge Garcia e Márcio Pial logo iria surpreender mesclando street dance e acrobacias. O público já soltou as primeiras risadas desabridas, destensionando o ambiente. E assim o espetáculo foi ganhando forma, com as entradas de palhaços parlapatões – o clown gordo que é ridicularizado pelo augusto, mas se dá bem no final; o chef francês que tenta porque tenta fatiar batatas com serrote… – alternando com os primeiros bonecos de inflar – o porco sobre a mesa, os cachorrinhos azuis, o cão rosa que anda na corda bamba…
Diante dos olhos da platéia, muito próximas do picadeiro e pronta a interagir, o circo adquire força, com parada de mão, números aéreos, contorcionistas e até trapézio. O elenco passou por rigorosa seleção, tendo o estilo refinado nas incontáveis sessões de ensaio no Circo Escola Picadeiro, sob a orientação do histórico José Wilson. Hugo Possolo, diretor geral do espetáculo, se dedicou a dar uma roupagem cênica a cada número. Não bastava o cai-não-cai, o será-que-dá, a expansão dos limites do físico, o show de força e agilidade, a palhaçada pura. Era preciso não esquecer nunca a mise-en-cene. Daí o figurino caprichado de Cássio Brasil, salpicado de referências à cultura urbana. E a música de André Abujamra executada por uma banda com guitarra, teclado e percussão. Ao fundo e ao alto, onde pode espreitar sem deixar passar o momento certo de complementar a cena, ela participa do espetáculo como mais um personagem.
A performance de Dri Telg é um bom exemplo. Em um arco pendurado lá no alto ela voa sobre o picadeiro com elegância e perfeição técnica. Suas mãos são firmes, seu corpo esguio. Telg honra a tradição dos melhores trapezistas. Mas isso não basta. Ela interpreta com o olhar e cada gesto. Não satisfeita, desce ao solo e dança cercada por “dançarinos masoquistas”, com suas roupas negras e algo parecido a uma coleira no pescoço. Ao final, como uma donimandora ágil, dispensa-os com um golpe de perna vigoroso mas sensual. Um a um os “machos” caem do picadeiro em um salto acrobático.
Outro destaque é protagonizado por talvez uma das menores mulheres do mundo, Verônica Ned tem apenas 90 cm, em mais uma homenagem de Hugo Possolo ao milenar mundo do circo. Ela nunca havia trabalhado em circo antes, até conhecer o Roda Brasil, há 5 meses. Filha de um cantor também anão (Nélson Ned) sua voz é poderosa e bela. Seu canto ditou o enlevo de um dos momentos mais líricos da noite, quando um artista, cujo traje coberto de penas brancas remetia ao mito grego de Ícaro, foi alçado ao mais alto da abóbada circense, pairando sob o público, tendo à sua volta o arco de holofotes multicoloridos.
Um dos momentos mais hilários, com o qual ninguém ficou indiferente, foi quando se armou um estapafúrdio campo de futebol no picadeiro. As traves do gol foram formadas por “voluntários” da platéia (uma fita adesiva os unia, fazendo as vezes de travessão). Crianças se postaram na barreira, as meninas protegendo as partes de cima, os meninos, as de baixo. Na hora da cobrança de falta, um jogador arrumava o meião despretenciosamente. Houve uma confusão que resultou numa bela cabeçada no peito de outro. A esquete serviu para incorporar cenas que ficaram no imaginário pós-copa do mundo. Aliás, “Stapafúrdyo” é dividido em dois tempos de 45 minutos cada, com intervalo de 15 minutos. Igual ao jogo de futebol.
Em suma, o espetáculo “Stapafúrdyo”, cuja estréia nacional propriamente é hoje, sexta, 14 de julho, às 21h, reúne uma série de vertentes circenses que proliferam pela cidade. A arte do palhaço, as proezas do corpo, os vôos dos números aéreos.
É claro que em sua pré-estréia “Stapafúrdyo” enfrentou falhas. Por exemplo, embora belos e divertidos, evidentemente por algum motivo técnico os gigantescos bonecos infláveis do Pia Fraus não puderam demonstrar todo o seu potencial. É o tipo de problema que dificilmente acontecerá duas vezes. Aliás, o espetáculo deve crescer a cada sessão, com algumas mudanças necessárias. Mas uma coisa não deve mudar e talvez fique para a próxima montagem do Circo Roda Brasil: por opção conceitual, os números circenses e gags ficaram estanques. Caso eles se integrassem, levados por um fio condutor, por mais tênue que fosse, talvez a unidade narrativa resultante ficasse interessante. Neste caso, as artes cênicas teria aumentado ainda mais sua contribuição às artes circenses.
Como no recente Panorama do Circo Paulista, que aconteceu neste mesmo Memorial, no mês passado, o Circo Roda Brasil concientemente rompe com a divisão entre circo contemporâneo e circo tradicional. Dá para imaginar qual não vai ser a reação do publico diante de um espetáculo com tanto profissionalismo em outros centros fora de São Paulo, já que o circo deve viajar pelo interior de São Paulo e Paraná, pelo menos. Assim como o Circo Zanni, eles decidiram experimentar a proteção da barriga da lona. É certo que correm o risco de nunca mais sair dela, como sempre aconteceu com tantos e tantos artistas ao redor do mundo. Mais Stapafúrdyo, impossível…
Saiba mais sobre o espetáculo Stapafúrdyo
Serviço:
Pré-estréia: 12 de julho
Temporada em São Paulo: 14 de julho a 30 de novembro
Sextas 21h
Sábados 17h e 20h
Domingos 15h e 18h
Ingressos:
Sexta: R$20,00 inteira e R$10,00 meia
Sáb e Dom: R$30,00 inteira e R$15,00 meia
Local: Memorial da América Latina
Rua Auro Soares de Moura Andrade, 664 (entrada pelo portão 9)
Fotos: Eduardo Rascov