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Sheila Maureen Bisilliat recebeu a Ordem do Mérito Cultural 2010 em cerimônia no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2 de dezembro de 2010. Oferecida pelo Ministério da Cultura a 40 pessoas (algumas in memoriam) ou a entidades, é a mais importante comenda cultural do Brasil. A premiação é um reconhecimento público e oficial pelo muito que fizeram à cultura brasileira.
A direção da cerimônia de entrega da Ordem do Mérito Cultural 2010 foi confiada à diretora teatral Bia Lessa. Como é do seu estilo, ela resolveu inovar. E produziu um show à parte. A festa contou com a presença do presidente da Fundação Memorial da América Latina, Fernando Leça, do prefeito do Rio, Eduardo Paes, do governador Sérgio Cabral Filho e do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que aproveitou para sancionar o Plano Nacional de Cultura, que traça metas para políticas públicas na área de cultura nos próximos 10 anos.
A solenidade começou com uma tênue ? e gigantesca – cortina descendo no proscênio e servindo de tela esvoaçante na qual seria projetada incessantemente um filme feito especialmente para a ocasião. Em ritmo vertiginoso, desfilavam tomadas aéreas de pontos geográficos do Brasil, ao som retumbante que mesclava música eletrônica a chorinho, samba, maracatu… Logo surgiram inscrições e fotos antigas do homenageado principal – norte de tudo o que aconteceria ali – o antropólogo Darcy Ribeiro.
O filme continuava quando se percebia, atrás da cortina transparente, que alguém recebia um foco de luz e começava a falar. Por instantes, não dava para saber se ele estava realmente no palco ou se era também uma projeção. Até que ficou claro que se tratava do Ministro da Cultura, Juca Ferreira, de corpo presente, abrindo o festejo.
A partir desses momento, houve uma sucessão de acontecimentos atrás da tela de tecido, enquanto o documentário rolava solto, confundindo os dois planos: Acompanhados de uma banda, se apresentam Adriana Calcanhoto, Margareth Menezes e Arnaldo Antunes. Intercalado entre um show e outro, as comendas foram sendo entregues aos homenageados ao mesmo tempo em que eram projetadas imagens das carreiras respectivas e as mensagens de agradecimento.
Até que, surpresa, ?caem? do teto enormes cachos de bananas sustentados por linhas invisíveis e ficam pendurados em alturas diferentes, formando um mosaico tridimensional. A surpresa maior estava reservada para o final: agora eram pessoas que desciam penduradas em balanços feito trapezistas. Vestidas de vermelho, elas soltavam pétalas de rosas da mesma cor. A cortina então foi içada, um tapete vermelho estendido e, num final apoteótico, surge do fundo o presidente Lula que, ao lado de Bibi Ferreira, acompanha o Hino Nacional. Os quarenta homenageados então se perfilam e vão ao encontro e são cumprimentados pelo presidente Lula.
Equivalências brasilerias
Uma das ganhadores da Ordem do Mérito Cultural 2010, Maureen Bisilliat (na foto à esquerda, ao lado do presidente do Memorial, Fernando Leça, em um camarote do Teatro Municipal) exerce a função de curadora do Pavilhão da Critatividade Darcy Ribeiro, do Memorial da América Latina. O Pavilhão da Criatividade reúne um amplo acervo de objetos da cultura material e da arte popular de países da América Latina, especialmente aqueles de forte influência Inca, Maia e Astecas, entre outras culturas pré-colombianas, como Peru, Equador e Bolívia, Guatemala e México. Há também um rico conjunto do Paraguai, Chile, Uruguai e Brasil, claro.
Ao lado do marido, Jacques Bisilliat, já falecido, Maureen percorreu os países citados para identificar e adquirir as peças da coleção, isso em 1988, quando o Memorial deixava de ser um sonho e estava prestes a ser inaugurado, o que aconteceu em março de 1989. Maureen foi escolhida para essa tarefa pelo antropólogo Darcy Ribeiro, pois ele sabia que ela tinha desenvolvido um olho clínico para identificar a arte popular genuína e de alta qualidade, nos anos que manteve uma espécie de loja e galeria, nos Jardins, em São Paulo, chamada O Bode, dedicada ao artesanato brasileiro, principalmente ao mineiro e nordestino.
Só por essa atividade Maureen já merecia receber a Ordem do Mérito Cultural 2010, cujo tema, “Brasilididade”, e o patrono e grande homenageado, Darcy Ribeiro, tem a ver com a sua trajetória recente. Mas certamente Maureen foi lembrada pelo Ministério da Cultura muito mais por sua trajetória pregressa, na qual desenvolveu um olhar fotográfico original sobre o Brasil a partir da literatura. Para se entender melhor o que isso significa, é preciso conhecer um pouco da origem de Maureen Bisilliat.
Maureen nasceu em uma pequena cidade da Inglaterra (Englefield Green, Surrey), filha de mãe inglesa de origem irlandesa e pai argentino de origem calabresa. Ele era diplomata e por isso passou a infância e a adolescência viajando por vários países com a família. No livro “Fotografias Maureen Bisilliat”, lançado pelo Instituto Moreira Salles, em 2009, ela conta que estudou os primeiros anos de escola em quatro línguas – inglês, francês, alemão e espanhol – o que, se causava certa angústia, também a despertava para as palavras de uma maneira especial.
Por essas voltas que a vida dá, ela acaba se radicando no Brasil em 1952, aos 21 anos. Quando jovem, Maureen queria ser artista plástica, como sua mãe. Por isso, vai estudar pintura primeiro em Paris e depois em Nova York, onde passa temporadas. Somente na década de 60 larga a pintura para se dedicar exclusivamente à fotografia. Trabalhou com fotojornalismo, quando fez reportagens antológicas para a revista Realidade, da editora Abril, como “Mulheres caranguejeiras”, com o amigo Audálio Dantas. Nessa época, ela já tinha descoberto a literatura brasileira, que era a sua maneira de se aprofundar na cultura brasileira.
Por ter tido uma vida errante até então, Maureen precisava fincar raízes. E usou a fotogafia para isso. Foi então que se lembrou do conceito de “equivalências fotográficas”, que ela havia conhecido com o fotógrafo vanguardista norte-americano Alfred Stieglitz, quando viveu em Nova York. A idéia consciste em “imagens aliadas à escrita, frases escolhidas definindo melodicamente a linha da orquestração… ritmos, silêncios, acordes, vazios. A palavra, escolhida da produção literária ou pinçada do testemunho biográfico, vem da fala íntima da pessoa, destilada. Seria quase como escrever com imagens e ver com a palavra” (“Fotografias Maureen Bisillia”, IMS).
Amante da palavra e da escrita, pintora, desenhista, especialista em artes visuais, Maureen viu na fotografia a melhor linguagem para captar o que via e sentia da realiade e expressar sua visão de mundo. Seu primeiro trabalho unindo literatura e fotografia foi “A João Guimarães Rosa” (1969), no qual percorreu as veredas do mítico “grande sertão” em busca dos personagens reais que inspiraram o escritor. A partir daí publicou “equivalências” imagéticas de obras de Jorge Amado, João Cabral de Melo Neto, Mário de Andrade e Adélia Prado, entre outros escritores. Sua parceria com os irmãos Villas-Bôas também rendeu importantes – e belíssimos – trabalhos pictográficos sobre os índios do Xingu.
Entre os agraciados além de Maureen Bisilliat, estavam Mário Gruber, Leonardo Boff, Leon Cakoff, Jaguar, Ítalo Rossi, Hermeto Pascoal, Glória Pires, Gal Costa, Dom Pedro Casaldáliga, Denise Stoklos, Cesaria Evora e Demônios da Garoa. Entre os in memoriam, Carlos Drummond de Andrade, Cazuza, João Cabral de Melo Neto, Joaquim Nabuco e Nelson Rodrigues.
Igualmente foram agraciadas entidades, como a Escola de Cinema San Antonio de los Baños, a Sociedade Cultural Orfeica Lira Ceciliana e o Conjunto Época de Ouro. Também foram premiados artistas que não freqüentam a mídia e são pouco conhecidos fora de sua comunidade ou região, como o Coral das Lavadeiras (Almenara, MG), Azeleme Kaingáng (líder indígena do Rio Grande do Sul), Ás de Ouro (violeiro goiano) e o Maracatu Estrela Brilhante de Igarassu, entre outros.
Fotos e texto: Eduardo Rascov